segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Ramayana de Chevalier


Ramayana de Chevalier

Saudade da infância



Era no colégio do meu pai, aos primeiros albores de minha vida. Os sonhos, ainda multicores, não tinham forma. O calor, idêntico. Pelas tardes estivais, fagulhantes de luz, o pregão dos doceiros era em gaita de folha. Um assovio musical, longo e agudo, enchendo a rua. E os bondes, pesados e barulhentos, chacoalhavam a poeira e reduziam a pó os cacos das garrafas, da próxima trança de papagaios.

Por essa época, ainda criança, eu escolhia a sombra que descia sobre o quintal e ali ficava, sentado, a observar as árvores militarizadas, ou subia ao muro de trás, divertindo-me com os cães vadios e obscenos, ou com a molecagem da Baixa. De tarde, fatigado e cheio de suor, tomava meu banho quase morno, porque a caixa dágua ficava ao sol. E, à noitinha, lá estava eu na calçada, batendo papo com os outros garotos do colégio, ou contando as aventuras da última fita de cinema para os vizinhos. Vida simples, vida de bairro humilde, de cidade pequena.

Nunca me queixo do calor. Ao contrário, pelas nove horas da noite, muitas vezes o sono me surpreendeu escutando o toque de silêncio do quartel da Polícia Militar, com uma leve sensação de frio noturno. E, pelas madrugadas engalinhadas de cantos alegres, eu acordava, preguiçoso de deixar o leito, sentindo arrepios de umidade gostosa.

Depois, viajei. Esbati-me, como um fardo sequioso, pelas arestas do mundo. Onde havia um sexo, aí estava a minha bandurra. Onde morasse um sofrimento, aí comparecia, piedoso, o meu coração. E conheci outros climas, amenidades estranhas, delícias montanhesas, primaveras veludosas como peles femininas, invernos elegantes e acolhedores.

Conheci o valor de um abraço sob um edredom de penas, a carícia de uma ternura mansa dentro do outuono (sic) triste. Caíram folhas de árvores solenes, uma a uma, diante de mim, como se fugissem do galho materno, a dormir no chão. E as rajadas magníficas do vento sul, esbofetearam-me no rosto, emprestando ao meu olhar o brilho forte dos vencedores.

Nos Andes, nos pampas, nas ribas tristes do Paraguai, no planalto de Piratininga, por onde passei, da orla inenarrável da costa fluminense às coxilhas mansas da terra lageana, amei à Terra com um amor cosmopolita. Desequilibrei o meu sistema termo-regulador.
Hoje, de regresso aos meus pagos, sinto calor. O menino de ontem não revelou o seu segredo ao homem de agora. Os revérberos da estreia causticante, nas vidraças que agonizam em reflexos, me tornam soturno, abichornado, entre parêntesis. Sou, hoje, um aficionado número um da sesta. A rede tem hoje um significado muito mais profundo e mais místico.

Quando a ciência nutricionista atribui à lentidão equatorial o caráter de defesa do homem contra o clima, está perfeitamente certa. Os ingleses, franceses, holandeses, que aqui vieram, também chegaram ligeirinhos e europeus no seu passo, no seu dinamismo. Traziam invernos nos nervos e nos sonhos. Depois, foram amolecendo. Em cinco anos, passaram a falar devagarinho. Em dez, andavam disputando o passo com os tracajás.

Mais tarde, ficaram fregueses do tacacá e começaram a comer o coração das melancias. Terminaram fazendo pipi nas calças sem vinco. Assim, todos os dolicocéfalos loiros que aportam por essas bandas.

Tenho inveja da criança que eu fui. Não sentia calor, brincava de sol a sol, mirava o “bichão”, frente a frente, empinando o meu “banda de asa”. Melhor seria não ter conhecido mais nada, lugar algum, povo nenhum, antes que as minhas calças percam o vinco...

Publicado em O Jornal. Manaus, 23 set. 1958









Espanando a memória



ERA de noite e eu estava com pressa. Mesmo sem causa, Manaus já dá pressa em quem está de carro. O asfalto faz isso. Estamos adquirindo uma fisionomia atual e civilizadíssima. O asfalto é um tobogã do progresso. Mas, como eu ia dizendo, era de noite, quando passei junto ao obelisquinho em frente ao “roadway”. Quatro velas estavam acesas. Quatro. Tremeluzindo, chorando, nas suas lágrimas de cera. Estavam ali, postas pelo povo. O “demos” grego, anônimo, gigantesco, imortal. O povo. Que mãos colocaram ali aquelas velas? Não importa. Elas significavam uma mensagem dos humildes a Getúlio Vargas. Não quero examinar a sua política, não desejo senti-lo como cacique. Aquelas velas despertaram, no meu íntimo, um desfile de recordações.
Era no Rio de Janeiro, e havia pouco terminara o drama revolucionário de 1930. A Junta Militar já havia ido comunicar ao presidente Washington Luís, que ele estava deposto. O cardeal dom Sebastião Leme que já se encontrava no Palácio da Princesa Isabel, onde residia o presidente, para acompanhá-lo, numa pá de cal melancólica, até à sua prisão no Forte do Leme. Tudo como se houvesse uma peça teatral, sem ensaio. Lentamente, de faces encovadas, o Sr. Washigton Luis saiu de sua câmara, acompanhado de S. Eminência. Era um dia claro mas sem sol. Quando surgiu na varanda, ao alto da escadaria que despeja para os jardins dianteiros, o general Mailan D´Angrone, então Chefe Militar do Palácio, adiantou-se majestosamente e deu a ordem para a tropa que esperava, perfilada e firme, diante do edifício:
“Á Sua Excelência, o Senhor Presidente da República, em continência!”

Ouviu-se um ruído de coices de armas, o ajuste dos fuzis ao tronco, olhares brilhantes de soldados obedientes, e o presidente Washington Luís desceu, solene, devagar, mirando o povo que se aglomerava na rua Pinheiro Machado, para entrar no carro oficial que o conduziria à prisão e ao exílio. O Rio estava esfuziante. Havia terminado a revolução e os panfletos terríveis de Mário Rodrigues estavam sendo fiscalizados pela censura. A derradeira manchete dessa fase, em A Crítica, dizia: “Acaba de chegar ao Rio de Janeiro, o senhor Getúlio Vargas, o anti-Cristo de rabo de porca”.

Era assim a violência das paixões naquele momento. Getulio apareceu ao povo, pouco depois, moço, de ar jovial, e envergando a sua farda de general da Revolução. Dois anos depois, saltava eu de novo no Rio, dessa vez fardado para as trincheiras de 1932. Engajado no III Batalhão do 9º R.I., segui como tenente para o Vale do Paraíba. Era um dos defensores do governo Vargas. Até hoje, tenho honra nisso. Servi às ordens do general P. Góis, no Exército de Leste. Tomei parte no ataque a Queluz, e Areias, a Silveiras, o mais feroz de todos, a Barro Vermelho, a Cunha e fiz ocupação em Tremembé e Taubaté. Demorasse mais um pouquinho revolução e eu teria ficado morto no ataque a Engenheiro Neiva, uma fortificação de cimento armado. Fiz ponta de vanguarda, fui ferido, repousei no Hospital de Lorena, lutei na frente, faminto, barbado, rastejando com os meus soldados. Em Silveiras, entrei com o III do 9º, de parabellum, entre os soldados em baioneta calada. Minha fé de ofício é honrosa e simples. Fui promovido por ato de bravura. Sempre com o pensa-mento voltado para o Chefe da Nação, tolerante, bondoso e trabalhista.


Assisti, anos mais tarde, à humilhação do gigante. Foi no dia da prisão de Gregório Fortunato, nos jardins do Palácio do Catete. Antes de entrar no automóvel que o levaria ao Galeão, Fortunato ainda discutia no jardim. Cercavam-no soldados da Aeronáutica e oficiais. Junto à grade do lado, eu observava a cena. E no segundo andar, dentre as frinchas da venziana, vi um vulto que contemplava, em silêncio, toda a teatral prisão do chefe da guarda pessoal.
Era o presidente Vargas. Nada podia fazer. Nada esperava mais. Tinha prometido ao grupo de emergência, constituído no Galeão, que o levariam até lá, preso, para depor. O homem que viera nas asas da revolução de 30, o chefe político do uma Nação que ele impulsionara para a frente, o Chefe supremo dos exércitos em 1932, o ditador das Américas, o Grande Líder, o presidente Constitucional do Brasil, depois, iria descer do seu pedestal, para comparecer, como um preso comum, diante de oficiais que ele promovera, diante de oficiais que ele havia ajudado a generalar-se.
Era ao crepúsculo e eu não pude ver os seus olhos. Das frinchas, ele se despedia, tristemente, do seu amigo e escudeiro. Durante mais de vinte anos, a sua vida fora guardada por aquele cão de fila negro e fiel. Alguns dias depois, passara eu a noite mal dormida, com os acontecimentos. A cidade do Rio estava com os nervos de poraquê. Pelas oito horas da manhã, abri o rádio, todos acordados em minha casa, esperando a notícia da prisão do Grande Presidente. Foi então que escutamos a mensagem:
“Alô! Alô! Brasil! Atenção! Acaba de se suicidar no Palácio do Catete o presidente Getúlio Dornelles Vargas”.
Foi o maior choque que já sofri em minha vida. Todos, de mim as minhas filhas, a minha pupila, todos choramos. O Rio, o Brasil inteiro chorou. Só não o fizeram os que continuaram a maquinar traições contra sua memória. Tive vontade de sair de casa, armado, para desafiar todo mundo. Era o desespero, era a ferida popular. Se ele tivesse apelado para o povo, nenhum poder o derrubaria! Agradeço, “àquelas quatro velas, estas lembranças estão sentidas. Só havia quatro velas acesas. Mas elas valeram por um milhão delas. Porque foram colocadas pelos que, ainda hoje, choram pelo maior dos brasileiros de todos os tempos.
 A GAZETA. Manaus, 20 de abril de 1961


Cazaquistão.
Ramayana de Chevalier, 1958

Em Manaus, Ramayana de Chevalier tomou de sua pena brilhante e produziu o texto que reproduzo. Também ele, o texto, cinquentenário, publicado em A Gazeta, em 14 de abril. Ano dessas aventuras - 1961.


Estamos vivendo a hora cósmica. Nossa casa é pequena para a vertigem do nosso sonho. A ciência soviética acaba de penetrar no universo oleoso e silente do firmamento estelar. As cadelas que precederam ao salto humano pelo silêncio sideral merecem nossa mais carinhosa gratidão. Agora sentimos, em toda a sua extensão, de como foram ridículos e imbecis os santinhos da Sociedade Protetora dos Animais, com os seus protestos líricos. Depois dessas cadelas magníficas, o homem foi lançado, pela primeira vez na história da humanidade, a uma velocidade de 600 mil quilômetros/hora, numa altitude de 340 mil metros acima do solo, completando, em uma hora e meia de relógio, a volta em torno do planeta.

Note-se, para efeito de raciocínio, que o nosso planeta Terra é lançado no espaço a uma razão de 104 mil quilômetros por hora, dando-nos a perfeita ilusão de estabilidade e fixidez, de tanta estabilidade que iludiu aos astrônomos antecessores do Copérnico. Numa velocidade, pois, algumas vezes maior do que a massa do planeta, esse bólido russo conseguiu levar um ser humano a uma altura jamais suspeitada, num deslocamento alucinante, que trouxe, como prova, uma série de hipóteses cosmológicas que a Relatividade Restrita de Einstein havia, teoricamente, comprovado.
Uma delas é a absoluta ausência de luz no espaço cósmico. A outra, que representa uma afirmação categórica da teoria corpuscular, é a que declara que, na visão do firmamento, a luz, lançada como um oceano corpuscular através do infinito, só é sentida quando encontra a massa dos planetas ou dos cometas transeuntes. A visão que o astronauta Gagarin teve do espaço cósmico, mergulhado nele a uma profundidade de 340 quilômetros distante da Terra, confere com as anotações de Einstein e com a moderna teoria mecânica celeste e da física corpuscular. O espaço é negro. Ao longe, Gagarin conseguiu entrever o seu planeta, mergulhado num azul claríssimo, resultado do impacto do feixe luminoso nas camadas atmosféricas e na própria massa da Terra. A sua visão deve ter sido angelical. Assim devem os anjos contemplar à Terra e Deus, como Lei, na sua escuridão permanente, assiste à vitória dos seus filhos, sem comoções.
Revista Veja, 20 abr. 2011


A vinda do astronauta, em perfeito estado físico, como de resto já havia chegado os animais enviados ao espaço, assegura também uma razão admirável à teoria einsteiniana do espaço pessoal, arrastando cada um de nós o seu universo de bolso em torno de si. O que acontece com o microclima para os vegetais, existe também para o ser humano, quanto às inerências de sua condição biológica e sensorial.
O homem conduz o seu próprio universo. Os planetas, com a sua atmosfera, as suas nuvens, as suas diferenças climáticas, volitam em torno do Sol, num arranco de 104 mil quilômetros por hora, no que tange ao nosso “habitat”. Os de maior volume, certamente se deslocarão em velocidades superiores, de acordo com o seu empuxo necessário. Dentro dessa concepção, o homem, como indivíduo, também arrasta consigo o seu continente cósmico, capaz de isolá-lo e de mantê-lo, num equilíbrio de compensação, dentro de um esquema de resistência pessoal à velocidade.
Não podem ser selvagens, nem atrasados, nem primitivos, aqueles que possuem cientistas capazes de tais cometimentos. Parece não ter razão o presidente do Banco de Boston, quando nega à Rússia qualquer virtude. A exploração do homem pelo homem está perdendo na competição com a ciência socialista.
Gagarin, hoje, não é astronauta russo. É um cidadão do mundo, que veio concorrer para provar que todos somos irmãos e que a ciência, quanto mas prestigiada pelo Estado, mais frutos dará e mais novidades oferecerá aos sedentos de sabedoria e de liberdade... 













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Recordando o Passado

Ildefonso Pinheiro

Antes de falar em Ramayana de Chevalier, é preciso recordar o antigo Instituto Chevalier onde o seu pai, professor José Chevalier fincou o marco conclamador do dito instituto, cujo nome tornou-se flâmula desta terra. Lembro-me perfeitamente que o instituto foi instalado pela primeira vez na Rua dos Andradas, num amplo sobrado que ainda hoje pode ser visto em seu estilo colonial, de beleza atraente. 

O Instituto Chevalier ali foi instalado em 1911 ou 1912, tendo permanecido por muito tempo. Depois mudou-se para a rua Dr. Moreira, esquina com a Quintino Bocaiuva, onde atualmente se encontra a Hospedaria Garrido. Aí funcionavam diversos cursos tendo como professores — José Chevalier e Paulo Eleuterio que, entusiasmados pelo Escotismo, passaram a lecionar esta disciplina que Olavo Bilac com suas belas canções impulsionara o povo brasileiro de Norte ao Sul. Assim, ao amanhecer de cada dia estavam os dois mestres dedicados a convocar os meninos daquela época para tão sublime conquista espiritual. 
Entre os novos escoteiros encontrava-se Ramayana de Chevalier, moço sagaz, em cujos olhos existia a esperança para o Brasil de mais um filho culto e radiante. Ele foi um soldado impulsionado pelo sentimento poético de Olavo Bilac com suas canções patrióticas, pois tocavam os corações pela chama sagrada do ideal, do amor pela liberdade e pelo progresso do Brasil. 
No desenvolver dos tempos, Ramayana de Chevalier fora tido como um espirito fadado às ciências e às letras. Ao seu lado encontravam-se Leopoldo Peres, André Araújo, Carlos de Araújo Lima, Olavo das Neves e muitos outros que conduziam a bandeira da ordem e do progresso, nos seus corações. Nesse desenvolver de dias, noites e meses, anos se passaram e chegamos ao ano de 1941 quando encontrei Ramayana de Chevalier viajando no navio Santos, do Loide Brasileiro, de Manaus à cidade Maravilhosa. 
Nessa comprida viagem de 22 dias o navio fora transformado numa Academia de Letras, onde os astros fulguravam com seus espíritos de jornalista, poeta, sociólogo, que eu ainda hoje conservo em minha retina, fazendo reviver aqueles dias felizes, nos quais Ramayana de Chevalier, André Araújo, Genesino Braga e Aguinaldo Archer Pinto transformaram aquela cidade flutuante num ambiente de artes e de cultura. 
Em 1950 o vi e senti ao lado de Adalberto Vale com o seu verbo brilhante e sedutor quando saudava a gleba verde com o seu discurso pela passagem da entrega do “Hotel Amazonas” à cidade de Manaus.
Suas frases refeitas de imagens estelares tinham o encanto das flores às margens dos rios, a murmurar por todo este Amazonas que surpreende e catequiza tudo o que tiver a felicidade de o contemplar em sua apoteose maravilhosa.
A inauguração do “Hotel Amazonas” marca o divisor de suas épocas. Esta formidável iniciativa da Prudência Capitalização, através do gênio empreendedor de Adalberto Ferreira Valle, que Assis Chateaubriand classificou no seu brilhante artigo Dos Grisões à Amazônia com o único rival do anexo do Copacabana Palace, representa nas suas linhas arquitetônicas, na excelência do seu material prestante, no arremesso de suas colunatas, no emaranhado modernismo dos seus detalhes técnicos, um monumento ao amazonense singular, cujo espirito, envolto nas tarlatanas da graça e do poder positivo, jamais se esqueceu, como o fez Ruy, do ninho onde nascera... 

Sobre Ramayana de Chevalier o ministro Jorge Mendes, na sessão do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas pedirá um minuto de silêncio para prestarem uma homenagem póstuma ao grande amazonense, dizendo: "Ramayana de Chevalier, como homem teve os erros, mas, nas letras, vejo-o iluminado ao lado de Álvaro Maia como os dois maiores amazonenses". 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Caio Fernando Abreu




Caio Fernando Abreu

Aqueles dois

(História de aparente mediocridade e repressão)
Para Rofran Fernandes
— "I announce adhesiveness,
I say it shall be limitless,
unloosen il
I say you shall yet find the
friend youwere looking for."
(Walt Whitman: So Long!)

A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.
Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.
Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.
Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.
                                                                                        II Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.
Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.
Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.
Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.
                                                                                III Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.
Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.
Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.
Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.
Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.
                                                                            IV Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.
Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.
Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.
                                                                            V Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.
No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.
Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.
Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.
Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou.
Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.
Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos.
Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.
Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.
Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.
 
 

Linda, uma história horrível



Caio Fernando Abreu
 Para Sergio Keuchguerian
"Você nunca ouviu falar em maldição
nunca viu um milagre
nunca chorou sozinha num banheiro sujo
nem nunca quis ver a face de Deus."
(Cazuza: "Só as mães são felizes")
 

Só depois de apertar muitas vezes a campainha foi que escutou o rumor de passos descendo a escada. E reviu o tapete gasto, antigamente púrpura, depois apenas vermelho, mais tarde rosa cada vez mais claro — agora, que cor? — e ouviu o latido desafinado de um cão, uma tosse noturna, ruídos secos, então sentiu a luz acesa do interior da casa filtrada pelo vidro cair sobre sua cara de barba por fazer, três dias. Meteu as mãos nos bolsos, procurou um cigarro ou um chaveiro para rodar entre os dedos, antes que se abrisse a janelinha no alto da porta.
Enquadrado pelo retângulo, o rosto dela apertava os olhos para vê-lo melhor. Mediram-se um pouco assim — de fora, de dentro da casa —, até ela afastar o rosto, sem nenhuma surpresa. Estava mais velha, viu ao entrar. E mais amarga, percebeu depois.
— Tu não avisou que vinha — ela resmungou no seu velho jeito azedo, que antigamente ele não compreendia. Mas agora, tantos anos depois, aprendera a traduzir como que-saudade, seja-benvindo, que-bom-ver-você ou qualquer coisa assim. Mais carinhosa, embora inábil.
Abraçou-a, desajeitado. Não era um hábito, contatos, afagos. Afundou tonto, rápido, naquele cheiro conhecido — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, creme de beleza e carne velha, sozinha há anos. Segurando-o pelas duas orelhas, como de costume, ela o beijou na testa. Depois foi puxando-o pela mão, para dentro.
— A senhora não tem telefone — explicou. — Resolvi fazer uma surpresa.
Acendendo luzes, certa ânsia, ela o puxava cada vez mais para dentro. Mal podia rever a escada, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados. A cadela se enrolou nas pernas dele, ganindo baixinho.
— Sai, Linda — ela gritou, ameaçando um pontapé. A cadela pulou de lado, ela riu. — Só ameaço, ela respeita. Coitada, quase cega. Uma inútil, sarnenta. Só sabe dormir, comer e cagar, esperando a morte.
— Que idade ela tem? — ele perguntou. Que esse era o melhor jeito de chegar ao fundo: pelos caminhos transversos, pelas perguntas banais. Por trás do jeito azedo, das flores roxas do robe.
— Sei lá, uns quinze. — A voz tão rouca. — Diz—que idade de cachorro a gente multiplica por sete.
Ele forçou um pouco a cabeça, esse era o jeito:
— Uns noventa e cinco, então.
Ela colocou a mala dele em cima de uma cadeira da sala. Depois apertou novamente os olhos. E espiou em volta, como se acabasse de acordar:
— O quê?
— A Linda. Se fosse gente, estaria com noventa e cinco anos.
Ela riu:
— Mais velha que eu, imagina. Velha que dá medo. — Fechou o robe sobre o peito, apertou a gola com as mãos. Cheias de manchas escuras, ele viu, como sardas (ce-ra-to-se, repetiu mentalmente), pintura alguma nas unhas rentes dos dedos amarelos de cigarros. — Quer um café?
— Se não der trabalho — ele sabia que esse continuava sendo o jeito exato, enquanto ela adentrava soberana pela cozinha, seu reino. Mãos nos bolsos, olhou em volta, encostado na porta.
As costas dela, tão curvas. Parecia mais lenta, embora guardasse o mesmo jeito antigo de abrir e fechar sem parar as portas dos armários, dispor xícaras, colheres, guardanapos, fazendo muito ruído e forçando-o a sentar — enquanto ele via. Manchadas de gordura, as paredes da cozinha. A pequena janela basculante, vidro quebrado. No furo do vidro, ela colocara uma folha de jornal. País mergulha no caos, na doença e na miséria — ele leu. E sentou na cadeira de plástico rasgado.
— Tá fresquinho — ela serviu o café. — Agora só consigo dormir depois de tomar café.
—A senhora não devia. Café tira o sono.
Ela sacudiu os ombros:
— Dane-se. Comigo sempre foi tudo ao contrário.
A xícara amarela tinha uma nódoa escura no fundo, bordas lascadas. Ele mexeu o café, sem vontade. De repente, então, enquanto nem ele nem ela diziam nada, quis fugir. Como se volta a fita num videocassete, de costas, apanhar a mala, atravessar a sala, o corredor de entrada, ultrapassar o caminho de pedras do jardim, sair novamente para a ruazinha de casas quase todas brancas. Até algum táxi, o aeroporto, para outra cidade, longe do Passo da Guanxuma, até a outra vida de onde vinha. Anônima, sem laços nem passado. Para sempre, para nunca mais. Até a morte de qualquer um dos dois, teve medo. E desejou. Alívio, vergonha.
— Vá dormir — pediu. — É muito tarde. Eu não devia ter vindo assim, sem avisar. Mas a senhora não tem telefone.
Ela sentou à frente dele, o robe abriu-se. Por entre as flores roxas, ele viu as inúmeras linhas da pele, papel de seda amassado. Ela apertou os olhos, espiando a cara dele enquanto tomava um gole de café.
— Que que foi? — perguntou, lenta. E esse era o tom que indicava a abertura para um novo jeito. Mas ele tossiu, baixou os olhos para a estamparia de losangos da toalha. Vermelho, verde. Plástico frio, velhos morangos.
Nada, mãe. Não foi nada. Deu saudade, só isso. De repente, me deu tanta saudade. Da senhora, de tudo.
Ela tirou um maço de cigarros do bolso do robe:
— Me dá o fogo.
Estendeu o isqueiro. Ela tocou na mão dele, toque áspero das mãos manchadas de ceratose nas mãos muito brancas dele. Carícia torta:
— Bonito, o isqueiro.
— É francês.
— Que é isso que tem dentro?
— Sei lá, fluido. Essa coisa que os isqueiros têm. Só que este é transparente, nos outros a gente não vê.
Ela ergueu o isqueiro contra a luz. Reflexos de ouro, o líquido verde brilhou. A cadela entrou por baixo da mesa, ganindo baixinho. Ela pareceu não notar, encantada com o por trás do verde, líquido dourado.
— Parece o mar — sorriu. Bateu o cigarro na borda da xícara, estendeu o isqueiro de volta para ele. — Então quer dizer que o senhor veio me visitar? Muito bem.
Ele fechou o isqueiro na palma da mão. Quente da mão manchada dela.
— Vim, mãe. Deu saudade.
Riso rouco:
— Saudade? Sabe que a Elzinha não aparece aqui faz mais de mês? Eu podia morrer aqui dentro. Sozinha. Deus me livre. Ela nem ia ficar sabendo, só se fosse pelo jornal. Se desse no jornal. Quem se importa com um caco velho?
Ele acendeu um cigarro. Tossiu forte na primeira tragada:
— Também moro só, mãe. Se morresse, ninguém ia ficar sabendo. E não ia dar no jornal.
Ela tragou fundo. Soltou a fumaça, círculos. Mas não acompanhou com os olhos. Na ponta da unha, tirava uma lasca da borda da xícara.
— É sina — disse. — Tua avó morreu só. Teu avô morreu só. Teu pai morreu só, lembra? Naquele fim de semana que eu fui pra praia. Ele tinha horror do mar. Uma coisa tão grande que mete medo na gente, ele dizia. Jogou longe a bolinha com a pintura da xícara. — E nem um neto, morreu sem um neto nem nada. O que mais ele queria.
— Já faz tempo, mãe. Esquece — ele endireitou as costas, doíam. Não, decidiu: naquele poço, não. O cheiro, uma semana, vizinhos telefonando. Passou as pontas dos dedos pelos losangos desbotados da toalha. — Não sei como a senhora consegue continuar morando aqui sozinha. Esta casa é grande demais pra uma pessoa só. Por que não vai morar com a Elzinha?
Ela fingiu cuspir de lado, meio cínica. Aquele cinismo de telenovela não combinava com o robe desbotado de flores roxas, cabelos quase inteiramente brancos, mãos de manchas marrons segurando o cigarro quase no fim.
— E agüentar o Pedro, com aquela mania de grandeza? Pelo amor de Deus, só se eu fosse sei lá. Iam ter que me esconder no dia das visitas, Deus me livre. A velha, a louca, a bruxa. A megera socada no quartinho de empregada, feito uma negra. — Bateu o cigarro. — E como se não bastasse, tu acha que iam me deixar levar a Linda junto?
Embaixo da mesa, ao ouvir o próprio nome a cadela ganiu mais forte.
— Também não é assim, não é, mãe? A Elzinha tem a faculdade. E o Pedro no fundo é boa gente. Só que.
Ela remexeu nos bolsos do robe. Tirou uns óculos de hastes remendadas com esparadrapo, lente rachada.
— Deixa eu te ver melhor — pediu.
Ajeitou os óculos. Ele baixou os olhos. No silêncio, ficou ouvindo o tic-tac do relógio da sala. Uma barata miúda riscou o branco dos azulejos atrás dela.
— Tu estás mais magro — ela observou. Parecia preocupada. — Muito mais magro.
— É o cabelo — ele disse. Passou a mão pela cabeça quase raspada. E a barba, três dias.
— Perdeu cabelo, meu filho.
— É a idade. Quase quarenta anos. — Apagou o cigarro. Tossiu. — E essa tosse de cachorro?
— Cigarro, mãe. Poluição.
Levantou os olhos, pela primeira vez olhou direto nos olhos dela. Ela também olhava direto nos olhos dele. Verde desmaiado por trás das lentes dos óculos, subitamente muito atentos. Ele pensou: é agora, nesta contramão(*). Quase falou. Mas ela piscou primeiro. Desviou os olhos para baixo da mesa, segurou com cuidado a cadela sarnenta e a trouxe até o colo.
— Mas vai tudo bem?
— Tudo, mãe.
— Trabalho?
Ele fez que sim. Ela acariciou as orelhas sem pêlo da cadela. Depois olhou outra vez direto para ele:
— Saúde? Dizque tem umas doenças novas aí, vi na tevê. Umas pestes.
— Graças a Deus — ele cortou. Acendeu outro cigarro, as mãos tremiam um pouco. — E a dona Alzira, firme?
A ponta apagada do cigarro entre os dedos amarelos, ela estava recostada na cadeira. Olhos apertados, como se visse por trás dele. No tempo, não no espaço. A cadela apoiara a cabeça na mesa, os olhos branquicentos fechados. Ela suspirou, sacudiu os ombros:
— Coitada. Mais esclerosada do que eu.
— A senhora não está esclerosada.
— Tu que pensa. Tem vezes que me pego falando sozinha pelos cantos. Outro dia, sabe quem eu chamava o dia inteiro? — Esperou um pouco, ele não disse nada. — A Cândida, lembra dela? Ô negrinha boa, aquela. Até parecia branca. Fiquei chamando, chamando o dia inteiro. Cândida, ô Cândida. Onde é que tu te meteu, criatura? Aí me dei conta.
— A Cândida morreu, mãe.
Ela tornou a passar a mão pela cabeça da cadela. Mais devagar, agora. Fechou os olhos, como se as duas dormissem.
— Pois é, esfaqueada. Que nem um porco, lembra? — Abriu os olhos. — Quer comer alguma coisa, meu filho?
— Comi no avião.
Ela fingiu cuspir de lado, outra vez.
— Cruz credo. Comida congelada, Deus me livre. Parece plástico. Lembra daquela vez que eu fui? — Ele sacudiu a cabeça, ela não notou. Olhava para cima, para a fumaça do cigarro perdida contra o teto manchado de umidade, de mofo, de tempo, de solidão. — Fui toda chique, parecia uma granfa. De avião e tudo, uma madame. Frasqueira, raiban. Contando, ninguém acredita. — Molhou um pedaço de pão no café frio, colocou-o na boca quase sem dentes da cadela. Ela engoliu de um golpe. — Sabe que eu gostei mais do avião do que da cidade? Coisa de louco, aquela barulheira. Nem parece coisa de gente, como é que tu agüenta?
— A gente acostuma, mãe. Acaba gostando.
— E o Beto? — ela perguntou de repente. E foi baixando os olhos até encaixarem, outra vez, direto nos olhos dele.
Se eu me debruçasse? — ele pensou. Se, então, assim. Mas olhou para os azulejos na parede atrás dela. A barata tinha desaparecido.
— Tá lá, mãe. Vivendo a vida dele.
Ela voltou a olhar o teto:
— Tão atencioso, o Beto. Me levou pra jantar, abriu a porta do carro pra mim. Parecia coisa de cinema. Puxou a cadeira do restaurante pra eu sentar. Nunca ninguém tinha feito isso. — Apertou os olhos. — Como era mesmo o nome do restaurante? Um nome de gringo.
— Casserole, mãe. La Casserole. — Quase sorriu, ele tinha uns olhos de menino, lembrou. — Foi boa aquela noite, não foi?
— Foi — ela concordou. — Tão boa, parecia filme. — Estendeu a mão por sobre a mesa, quase tocou na mão dele. Ele abriu os dedos, certa ânsia. Saudade, saudade. Então ela recuou, afundou os dedos na cabeça pelada da cadela.
— O Beto gostou da senhora. Gostou tanto — ele fechou os dedos. Assim fechados, passou—os pelos pêlos do próprio braço. Umas memórias, distância. — Ele disse que a senhora era muito chique.
— Chique, eu? Uma velha grossa, esclerosada. — Ela riu, vaidosa, mão manchada no cabelo branco. Suspirou. — Tão bonito. Um moço tão fino, aquilo é que é moço fino. Eu falei pra Elzinha, bem na cara do Pedro. Pra ele tomar como indireta mesmo, eu disse bem alto, bem assim. Quem não tem berço, a gente vê logo na cara. Não adianta ostentar, tá escrito. Que nem o Beto, aquela calça rasgadinha. Quem ia dizer que era um moço assim tão fino, de tênis? — Voltou a olhar dentro dos olhos dele. — Isso é que é amigo, meu filho. Até meio parecido contigo, eu fiquei pensando. Parecem irmãos. Mesma altura, mesmo jeito, mesmo.
— A gente não se vê faz algum tempo, mãe.
Ela debruçou um pouco, apertando a cabeça da cadela contra a mesa. Linda abriu os olhos esbranquiçados. Embora cega, também parecia olhar para ele. Ficaram se olhando assim. Um tempo quase insuportável, entre a fumaça dos cigarros, cinzeiros cheios, xícaras vazias — os três, ele, a mãe e Linda.
— E por quê?
— Mãe — ele começou. A voz tremia. — Mãe, é tão difícil — repetiu. E não disse mais nada.
Foi então que ela levantou. De repente, jogando a cadela ao chão como um pano sujo. Começou a recolher xícaras, colheres, cinzeiros, jogando tudo dentro da pia. Depois de amontoar a louça, derramar o detergente e abrir as torneiras, andando de um lado para outro enquanto ele ficava ali sentado, olhando para ela, tão curva, um pouco mais velha, cabelos quase inteiramente brancos, voz ainda mais rouca, dedos cada vez mais amarelados pelo fumo, guardou os óculos no bolso do robe, fechou a gola, olhou para ele e — como quem quer mudar de assunto, e esse também era um sinal para um outro jeito que, desta vez sim, seria o certo — disse:
— Teu quarto continua igual, lá em cima. Vou dormir que amanhã cedo tem feira. Tem lençol limpo no armário do banheiro.
Então fez uma coisa que não faria, antigamente. Segurou-o pelas duas orelhas para beijá-lo não na testa, mas nas duas faces. Quase demorada. Aquele cheiro — cigarro, cebola, cachorro, sabonete, cansaço, velhice. Mais qualquer coisa úmida que parecia piedade, fadiga de ver. Ou amor. Uma espécie de amor.
— Amanhã a gente fala melhor, mãe. Tem tempo, dorme bem. Debruçado na mesa, acendeu mais um cigarro enquanto ouvia os passos dela subindo pesados pela escada até o andar superior. Quando ouviu a porta do quarto bater, levantou e saiu da cozinha.
Deu alguns passos tontos pela sala. A mesa enorme, madeira escura. Oito lugares, todos vazios. Parou em frente ao retrato do avô — rosto levemente inclinado, olhos verdes aguados que eram os mesmos da mãe e também os dele, heranças. No meio do campo, pensou, morreu só com um revólver e sua sina. Levou a mão até o bolso interno do casaco, tirou a pequena garrafa estrangeira e bebeu. Quando a afastou, gotas de uísque rolaram pelos cantos da boca, pescoço, camisa, até o chão. A cadela lambeu o tapete gasto, olhos quase cegos, língua tateando para encontrar o líquido.
Ele abriu os olhos. Como depois de uma vertigem, percebeu-se a olhar fixamente para o grande espelho da sala. No fundo do espelho na parede da sala de uma casa antiga, numa cidade provinciana, localizou a sombra de um homem magro demais, cabelos quase raspados, olhos assustados feito os de uma criança. Colocou a garrafa sobre a mesa, tirou o casaco. Suava muito. Jogou o casaco na guarda de uma cadeira. E começou a desabotoar a camisa manchada de suor e uísque.
Um por um, foi abrindo os botões. Acendeu a luz do abajur, para que a sala ficasse mais clara quando, sem camisa, começou a acariciar as manchas púrpura, da cor antiga do tapete na escada — agora, que cor? —, espalhadas embaixo dos pêlos do peito. Na ponta dos dedos, tocou o pescoço. Do lado direito, inclinando a cabeça, como se apalpasse uma semente no escuro. Depois foi dobrando os joelhos até o chão. Deus, pensou, antes de estender a outra mão para tocar no pêlo da cadela quase cega, cheio de manchas rosadas. Iguais às do tapete gasto da escada, iguais às da pele do seu peito, embaixo dos pêlos. Crespos, escuros, macios.
— Linda — sussurrou. — Linda, você é tão linda, Linda.
 
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sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

HEIDEGGER: LA FRASE DE NIETZSCHE "DIOS HA MUERTO"





LA FRASE DE NIETZSCHE «DIOS HA MUERTO»

Martin Heidegger

Traducción de Helena Cortés y Arturo Leyte en HEIDEGGER, M., Caminos de bosque, Madrid, 1996, pp. 190-240.


La siguiente explicación intenta orientar hacia ese lugar desde el que, tal vez, podrá plantearse un día la pregunta por la esencia del nihilismo. La explicación tiene su raíz en un pensamiento que comienza a ganar claridad por primera vez en lo tocante a la posición fundamental de Nietzsche dentro de la historia de la metafísica occidental. La indicación ilumina un estadio de la metafísica occidental que, presumiblemente, es su estadio final, porque en la medida en que con Nietzsche la metafísica se ha privado hasta cierto punto a sí misma de su propia posición esencial, ya no se divisan otras posibilidades para ella. Tras la inversión efectuada por Nietzsche, a la metafísica solo le queda pervertirse y desnaturalizarse. Lo suprasensible se convierte en un producto de lo sensible carente de toda consistencia. Pero, al rebajar de este modo a su opuesto, lo sensible niega su propia esencial la destitución de lo suprasensible también elimina a lo meramente sensible y, con ello, a la diferencia entre ambos. La destitución de los suprasensible termina en un «ni esto... ni aquello» en relación con la distinción entre lo sensible (aÞsyhtñn) y lo no-sensible (nohtñn). La destitución aboca en lo sin-sentido. Pero aún así, sigue siendo el presupuesto impensado e inevitable de los ciegos intentos por escapar a lo carente de sentido por medio de una mera aportación de sentido.
En lo que sigue, la metafísica siempre será pensada como la verdad de lo ente en cuanto tal en su totalidad, no como la doctrina de un pensador. El pensador tiene siempre su posición filosófica fundamental en la metafísica. Por eso, la metafísica puede recibir el nombre de un pensador. Pero esto no quiere decir en absoluto, según la esencia de la metafísica aquí pensada, que la correspondiente metafísica sea el resultado y la propiedad de un pensador en su calidad de personalidad inscrita en el marco público del quehacer cultural. En cada fase de la metafísica se va haciendo visible un fragmento de camino que el destino del ser va ganando sobre lo ente en bruscas épocas de la verdad. El propio Nietzsche interpreta metafísicamente la marcha de la historia occidental, concretamente como surgimiento y despliegue del nihilismo. Volver a pensar la metafísica de Nietzsche se convierte en una meditación sobre la situación y el lugar del hombre actual, cuyo destino, en lo tocante a la verdad, ha sido escasamente entendido todavía. Toda meditación de este tipo, cuando pretende ser algo más que una vacía y repetitiva crónica, pasa por encima de aquello que concierne a la meditación. Pero no se trata de un mero situarse por encima o más allá, ni tampoco de una simple superación. Que meditemos sobre la metafísica de Nietzsche no significa que ahora también y muy especialmente tengamos en cuenta su metafísica, además de su ética, su teoría del conocimiento y su estética, sino que intentamos tomarnos en serio a Nietzsche en cuanto pensador. Pues bien, para Nietzsche, pensar también significa representar lo ente en cuanto ente. Todo pensar metafísico es, por lo tanto, onto-logia o nada de nada.
La meditación que intentamos hacer aquí precisa de un sencillo paso previo, casi imperceptible, del pensar. Al pensar preparatorio le interesa iluminar el terreno de juego dentro del que el propio ser podría volver a inscribir al hombre en una relación originaria en lo tocante a su esencia. La preparación es la esencia de tal pensar.
Este pensamiento esencial -que, por lo tanto, siempre y desde cualquier punto de vista es preparatorio-, se dirije hacia lo imperceptible. Aquí, cualquier colaboración pensante, por muy torpe y vacilante que sea, constituye una, ayuda esencial. La colaboración pensante se convierte en una invisible semilla, nunca acreditada por su validez o utilidad, que tal vez nunca vea tallo o fruto ni conozca la cosecha. Sirve para sembrar o incluso para preparar el sembrado.
A la siembra le precede el arado. Se trata de desbrozar un campo que debido al predominio inevitable de la tierra de la metafísica tuvo que permanecer desconocido. Se trata de comenzar por intuir dicho campo, de encontrarlo y finalmente cultivarlo. Se trata de emprender la primera marcha hacia ese campo. Existen muchos caminos de labor todavía ignorados. Pero a cada pensador le está asignado un solo camino, el suyo, tras cuyas huellas deberá caminar, en uno y otro sentido, una y otra vez, hasta poder mantenerlo como suyo, aunque nunca le llegue a pertenecer, y poder decir lo experimentado y captado en dicho camino.
Tal vez el título «Ser y Tiempo» sea una señal indicadora que lleva a uno de estos caminos. De acuerdo con la implicación esencial de la metafísica con las ciencias -exigida y perseguida una y otra vez por la propia metafísica- y teniendo en cuenta que dichas ciencias forman parte de la propia descendencia de la metafísica, el pensar preparatorio también tendrá que moverse durante un tiempo en el círculo de las ciencias, porque éstas siguen pretendiendo ser, bajo diversas figuras, la forma fundamental del saber y lo susceptible de ser sabido, ya sea con conocimiento de causa, ya sea por el modo en que se hacen valer y actúan. Cuanto más claramente se aproximen las ciencias hacia la esencia técnica que las predetermina y señala, tanto más decisivamente se explica la pregunta por esa posibilidad del saber a la que aspira la técnica, así como por su naturaleza, sus límites y sus derechos.
Del pensar preparatorio y de su consumación forma parte una educación del pensar en el corazón de las ciencias. Encontrar la forma adecuada para que dicha educación del pensar no se confunda ni con la investigación ni con la erudición, es sumamente difícil. Esta pretensión siempre está en peligro, sobre todo cuando el pensar tiene que empezar por encontrar siempre y al mismo tiempo su propia estancia. Pensar en medio de las ciencias significa: pasar junto a ellas sin despreciarlas.
No sabemos qué posibilidades le reserva el destino de la historia occidental a nuestro pueblo y a Occidente. La configuración y disposición externas de estas posibilidades no son tampoco lo más necesario en un primer momento. Lo importante es sólo que aprendan a pensar juntos los que quieren aprender y, al mismo tiempo, que enseñando juntos a su manera, permanezcan en el camino y estén allí en el momento adecuado.
La siguiente explicación se mantiene, por su intención y su alcance, dentro del ámbito de la experiencia a partir de la que fue pensada «Ser y Tiempo». El pensar se ve interpelado incesantemente por ese acontecimiento que quiere que en la historia del pensamiento occidental lo ente haya sido pensado desde en relación con el ser, pero que la verdad del ser permanezca impensada y que, en cuanto posible experiencia, no sólo le sea negada al pensar, sino que el propio pensamiento occidental, concretamente bajo la figura de a metafísica nos oculte el acontecimiento de esa negativa aunque sea sin saberlo.
Por eso, el pensar preparatorio se mantiene necesariamente dentro del ámbito de la meditación histórica. Para ese pensar, la historia no es la sucesión de épocas, sino una única proximidad de lo mismo, que atañe al pensar en imprevisibles modos del destino y con diferentes grados de inmediatez.
Ahora se trata de meditar sobre a metafísica de Nietzsche. Su pensamiento se ve bajo el signo del nihilismo. Éste es el nombre para un movimiento histórico reconocido por Nietzsche que ya dominó en los siglos precedentes y también determina nuestro siglo. Su interpretación es resumida por Nietzsche en la breve frase: «Dios ha muerto».
Se podría suponer que la expresión «Dios ha muerto» enuncia una opinión del ateo Nietzsche y por lo tanto no pasa de ser una toma de postura personal y en consecuencia parcial y fácilmente refutable apelando a la observación de que hoy muchas personas siguen visitando las iglesias y sobrellevan las pruebas de la vida desde una confianza cristiana en Dios. Pero la cuestión es si la citada frase de Nietzsche es sólo la opinión exaltada de un pensador -del que siempre se puede objetar correctamente que al final se volvió loco- o si con ella Nietzsche no expresa más bien la idea que dentro de la historia de Occidente, determinada metafísicamente, se ha venido pronunciando siempre de forma no expresa. Antes de apresurarnos a tomar una postura, debemos intentar pensar la frase «Dios ha muerto» tal como está entendida. Por eso, haremos bien en evitar toda cuanta opinión precipitada acude de inmediato a la mente al oír algo tan terrible.
Las siguientes reflexiones intentan explicar la frase de Nietzsche desde ciertos puntos de vista esenciales. Insistamos una vez más: la frase de Nietzsche nombra el destino de dos milenios de historia occidental. Faltos de preparación como estamos todos, no debemos creer que podemos cambiar dicho destino por medio de una conferencia sobre la fórmula de Nietzsche, ni tan siquiera que lleguemos a conocerlo suficientemente. Pero, de todos modos, ahora será necesario que nos dejemos aleccionar por la meditación y que en el camino de ese aleccionamiento aprendamos a meditar.
Naturalmente, una explicación no debe limitarse a extraer el asunto del texto, sino que también debe a aportar algo suyo al asunto, aunque sea e manera imperceptible y sin forzar las cosas. Es precisamente esta aportación lo que el profano siempre siente como una interpretación exterior cuando la mide por el rasero de lo que él considera el contenido del texto y que con el derecho que se autoatribuye, critica tachándola de arbitraria. Sin embargo, una adecuada explicación nunca comprende mejor el texto de lo que lo entendió su autor, sino simplemente de otro modo. Lo que pasa es que ese otro modo debe ser de tal naturaleza que acabe tocando lo mismo que piensa el texto explicado.
Nietzsche enunció por vez primera la fórmula «Dios ha muerto» en el tercer libro del escrito aparecido en 1882 titulado «La gaya ciencia». Con este escrito comienza el camino de Nietzsche en dirección a la construcción de su postura metafísica fundamental. Entre este escrito y los inútiles esfuerzos en torno a la configuración de la obra principal que había planeado aparece publicado «Así habló Zarathustra». La obra principal planeada nunca fue concluida. De manera provisional debía llevar el título «La voluntad de poder» y como subtítulo «Intento de una transvaloración de todos los valores».
El chocante pensamiento de la muerte de un dios, del morir de los dioses, ya le era familiar al joven Nietzsche. En un apunte de la época de elaboración de su primer escrito, «El origen de la tragedia», Nietzsche escribe (1870): «Creo en las palabras de los primitivos germanos: todos los dioses tienen que morir». El joven Hegel dice así al final del tratado « Fe y saber» (1802): el «sentimiento sobre el que reposa la religión de la nueva época es el de que Dios mismo ha muerto». La frase de Hegel piensa algo distinto a la de Nietzsche, pero de todos modos existe entre ambas una conexión esencial escondida en la esencia de toda metafísica. La frase que Pascal toma prestada de Plutarco: «Le gran Pan est mort» (Pensées, 695), también entra en el mismo ámbito, aunque sea por motivos opuestos.
Escuchemos en primer lugar cuáles son las palabras exactas del texto completo, el número 125, de la obra « La gaya ciencia». El texto se titula « El loco» y reza así:

El loco.-¿No habéis oído hablar de ese loco que encendió un farol en pleno día y corrió al mercado gritando sin cesar: «¡Busco a Dios!, ¡Busco a Dios!». Como precisamente estaban allí reunidos muchos que no creían en Dios, sus gritos provocaron enormes risotadas. ¿Es que se te ha perdido?, decía uno. ¿Se ha perdido como un niño pequeño?, decía otro. ¿O se ha escondido? ¿Tiene miedo de nosotros? ¿Se habrá embarcado? ¿Habrá emigrado? -así gritaban y reían todos alborotadamente. El loco saltó en medio de ellos y los traspasó con su mirada. «¿Que a dónde se ha ido Dios? -exclamó-, os lo voy a decir. Lo hemos matado: ¡vosotros y yo! Todos somos sus asesinos. Pero ¿cómo hemos podido hacerlo? ¿Cómo hemos podido bebernos el mar? ¿Quién nos prestó la esponja para borrar el horizonte? ¿Qué hicimos, cuando desencadenamos la tierra de su sol? ¿Hacia dónde caminará ahora? ¿Hacia dónde iremos nosotros? ¿Lejos de todos los soles? ¿No nos caemos continuamente? ¿Hacia adelante, hacia atrás, hacia los lados, hacia todas partes? ¿Acaso hay todavía un arriba y un abajo? ¿No erramos como a través de una nada infinita? ¿No nos roza el soplo del espacio vacío? ¿No hace más frío? ¿No viene siempre noche y más noche? ¿No tenemos que encender faroles a mediodía? ¿No oímos todavía el ruido de los sepultureros que entierran a Dios? ¿No nos llega todavía ningún olor de la putrefacción divina? ¡También los dioses se descomponen! ¡Dios ha muerto! ¡Dios permanece muerto! !Y nosotros lo hemos matado! ¿Cómo podremos consolarnos, asesinos entre los asesinos? Lo más sagrado y poderoso que poseía hasta ahora el mundo se ha desangrado bajo nuestros cuchillos. ¿Quién nos lavará esa sangre? ¿Con qué agua podremos purificarnos? ¿Qué ritos expiatorios, qué juegos sagrados tendremos que inventar? ¿No es la grandeza de este acto demasiado grande para nosotros? ¿No tendremos que volvernos nosotros mismos dioses para parecer dignos de ellos? Nunca hubo un acto más grande y quien nazca después de nosotros formará parte, por mor de ese acto, de una historia más elevada que todas las historias que hubo nunca hasta ahora.» Aquí, el loco se calló y volvió a mirar a su auditorio: también ellos callaban y lo miraban perplejos. Finalmente, arrojó su farol al suelo, de tal modo que se rompió en pedazos y se apagó. «Vengo demasiado pronto -dijo entonces-, todavía no ha llegado mi tiempo. Este enorme suceso todavía está en camino y no ha llegado hasta los oídos de los hombres. El rayo y el trueno necesitan tiempo, la luz de los astros necesita tiempo, los actos necesitan tiempo, incluso después de realizados, a fin de ser vistos y oídos. Este acto está todavía más lejos de ellos que las más lejanas estrellas y, sin embargo, son ellos los que lo han cometido.» Todavía se cuenta que el loco entró aquel mismo día en varias iglesias y entonó en ellas su Requiem aeternam deo. Una vez conducido al exterior e interpelado contestó siempre esta única frase: « ¿Pues, qué son ahora ya estas iglesias, más que las tumbas y panteones de Dios?».

Cuatro años más tarde (1886), Nietzsche le añadió un quinto libro a los cuatro de que se componía «La gaya ciencia», titulándolo «Nosotros, los que no tenemos temor». El primer texto de dicho libro (aforismo 343) está titulado: «Lo que pasa con nuestra alegre serenidad». El pasaje comienza así: «El suceso más importante de los últimos tiempos, que ‘Dios ha muerto’, que la fe en el dios cristiano ha perdido toda credibilidad, comienza a arrojar sus primeras sombras sobre Europa.»
Esta frase nos revela que la fórmula de Nietzsche acerca de la muerte de Dios se refiere al dios cristiano. Pero tampoco cabe la menor duda -y es algo que se debe pensar de antemano- de que los nombres Dios y dios cristiano se usan en el pensamiento de Nietzsche para designar al mundo suprasensible en general Dios es e nombre para el ámbito de las ideas los ideales. Este ámbito de lo suprasensible pasa por ser, desde Platón o mejor dicho, desde la interpretación de la filosofía platónica llevada a cabo por el helenismo y el cristianismo, el único mundo verdadero y efectivamente real. Por el contrario, el mundo sensible es sólo el mundo del más acá un mundo cambiante por lo tanto meramente aparente, irreal. El mundo del más acá es el valle de lágrimas en oposición a la montaña de la eterna beatitud de más allá. Si, como ocurre todavía en Kant, llamamos al mundo sensible‘mundo físico’ en sentido amplio, entonces el mundo suprasensible es el mundo metafísico.
La frase «Dios ha muerto» significa que el mundo suprasensible ha perdido su fuerza efectiva. No procura vida. La metafísica, esto es, para Nietzsche, la filosofía occidental comprendida como platonismo, ha llegado al final. Nietzsche comprende su propia filosofía como una reacción contra la metafísica, lo que para él quiere decir, contra el platonismo.
Sin embargo, como mera reacción, permanece necesariamente implicada en la esencia de aquello contra lo que lucha, como le sucede a todos los movimientos contra algo. El movimiento de reacción de Nietzsche contra la metafísica es, como mero desbancamiento de ésta, una implicación sin salida dentro de la metafísica de tal modo, que ésta se disocia de su esencia y, en tanto que metafísica, no consigue pensar nunca su propia esencia. Y así, para la metafísica y por causa de ella, permanece oculto eso que ocurre precisamente dentro de ella y en tanto que ella misma.
Si Dios, como fundamento suprasensible y meta de todo lo efectivamente real, ha muerto, si el mundo suprasensible de las ideas ha perdido toda fuerza vinculante y sobre todo toda fuerza capaz de despertar y de construir, entonces ya no queda nada a lo que el hombre pueda atenerse y por lo que pueda guiarse. Por eso se encuentra en el fragmento citado la pregunta: «¿No erramos a través de una nada infinita?». La fórmula «Dios ha muerto» comprende la constatación de que esa nada se extiende. Nada significa aquí ausencia de mundo suprasensible y vinculante. El nihilismo, «el más inquietante de todos los huéspedes», se encuentra ante la puerta.
El intento de explicar la frase de Nietzsche «Dios ha muerto» debe ponerse al mismo nivel que la tarea de interpretar qué quiere decir Nietzsche con nihilismo, con el fin de mostrar su propia postura respecto a éste. Como, sin embargo, ese nombre se usa a menudo a modo de lema y término provocador, y también muy a menudo como palabra peyorativa y condenatoria, es necesario saber lo que significa. No basta con reclamarse como poseedor de la fe cristiana o alguna convicción metafísica para estar ya fuera del nihilismo. Del mismo modo, tampoco todo el que se preocupa por la nada y su esencia es un nihilista.
Parece que gusta usar ese nombre en un tono como si el mero adjetivo nihilista ya bastase, sin añadirle ningún pensamiento a la palabra, para suministrar la prueba de que una meditación sobre la nada precipita ya en la nada y comporta la instauración de la dictadura de la nada.
En general, habrá que preguntar si el nombre nihilismo, pensado estrictamente en el sentido de la filosofía de Nietzsche, sólo tiene un significado nihilista, es decir, negativo, un significado que empuja hacia una nada anuladora. Así pues, visto el uso confuso y arbitrario de la palabra nihilismo, será necesario -antes de una explicación concreta sobre lo que el propio Nietzsche dice acerca del nihilismo- ganar el correcto punto de vista desde el que podemos permitirnos preguntar por el nihilismo.
El nihilismo es un movimiento histórico, no cualquier opinión o doctrina sostenida por cualquier persona. El nihilismo mueve la historia a la manera de un proceso fundamental, apenas conocido, del destino de los pueblos occidentales. Por lo tanto, el nihilismo no es una manifestación histórica entre otras, no es sólo una corriente espiritual que junto a otras, junto al cristianismo, el humanismo y la ilustración, también aparezca dentro de la historia occidental.
Antes bien, el nihilismo, pensado en su esencia es el movimiento fundamental de la historia de Occidente. Muestra tal profundidad, que su despliegue sólo puede tener como consecuencia catástrofes mundiales. El nihilismo es el movimiento histórico mundial que conduce a los pueblos de la tierra al ámbito de poder de la Edad Moderna. Por eso, no es sólo una manifestación de la edad actual, ni siquiera un producto del siglo XIX, a pesar de que fue entonces cuando se despertó la agudeza visual para captarlo y su nombre se tornó habitual. El nihilismo no es tampoco el producto de naciones aisladas cuyos pensadores y escritores hablen expresamente de él. Aquellos que se creen libres de él, son tal .vez los que más a fondo lo desarrollan. Del carácter inquietante de este inquietante huésped forma parte el hecho de no poder nombrar su propio origen.
El nihilismo tampoco inaugura su predominio en los lugares en que se niega al dios cristiano, se combate el cristianismo o por lo menos, con actitud librepensadora, se predica un ateísmo vulgar. Mientras sigamos limitándonos a ver solamente los diversos tipos de incredulidad que reniegan del cristianismo, bajo sus variadas manifestaciones, nuestra mirada quedará presa de la fachada externa y más precaria del nihilismo. El discurso del loco dice precisamente que la frase «Dios ha muerto» no tiene nada en común con las opiniones confusas y superficiales de los que «no creen en dios». Aquellos que son no creyentes de este modo, no están todavía en absoluto afectados por el nihilismo como destino de su propia historia.
Mientras entendamos la frase «Dios ha muerto» solamente como fórmula de la falta de fe, la estaremos interpretando teológico-apologéticamente y renunciando a lo que le interesa a Nietzsche, concretamente la meditación que reflexiona sobre lo que ha ocurrido ya con la verdad del mundo suprasensible y su relación con la esencia del hombre.
El nihilismo, en el sentido de Nietzsche, no tapa por lo tanto en absoluto ese estado representado de manera puramente negativa que supone que ya no se puede creer en el dios cristiano de la revelación bíblica, y hay que saber que Nietzsche no entiende por cristianismo la vida cristiana que tuvo lugar una vez durante un breve espacio de tiempo antes de la redacción de los Evangelios y de la propaganda misionera de Pablo. El cristianismo es, para Nietzsche, la manifestación histórica, profana y política de la Iglesia y su ansia de poder dentro de la configuración de la humanidad occidental y su cultura moderna. El cristianismo en este sentido y la fe cristiana del Nuevo Testamento, no son lo mismo. También una vida no cristiana puede afirmar el cristianismo y usarlo como factor de poder, en la misma medida en que una vida cristiana no necesita obligatoriamente del cristianismo. Por eso, un debate con el cristianismo no es en absoluto ni a toda costa un ataque contra lo cristiano, así como una crítica de la teología no es por eso una crítica de la fe, cuya interpretación debe ser tarea de la teología. Mientras pasemos por alto estas distinciones esenciales nos moveremos en las bajas simas de las luchas entre diversas visiones del mundo.
En la frase «Dios ha muerto», la palabra Dios, pensada esencialmente, representa el mundo suprasensible de los ideales, que contienen la meta de esta vida existente por encima de la vida terrestre y, así, la determinan desde arriba y en cierto modo desde fuera. Pero si ahora la verdadera fe en Dios, determinada por la Iglesia, se va moviendo hacia adelante, si, sobre todo, la doctrina de la fe, la teología, en su papel como explicación normativa de lo ente en su totalidad, se ve limitada y apartada, no por eso se rompe la estructura fundamental por la que una meta situada en lo suprasensible domina la vida terrestre y sensible.
En el lugar de la desaparecida autoridad de Dios y de la doctrina de la Iglesia, aparece la autoridad de la conciencia, asoma la autoridad de la razón. Contra ésta se alza el instinto social. La huida del mundo hacia lo suprasensible es sustituida por el progreso histórico. La meta de una eterna felicidad en el más allá se transforma en la de la dicha terrestre de la mayoría. El cuidado del culto de la religión se disuelve en favor del entusiasmo por la creación de una cultura o por la extensión de la civilización. Lo creador, antes lo propio del dios bíblico se convierte en distintivo del quehacer humano. Este crear se acaba mutando en negocio.
Lo que se quiere poner de esta manera en el lugar del mundo suprasensible son variantes de la interpretación del mundo cristiano-eclesiástica y teológica, que había tomado prestado su esquema del ordo, del orden jerárquico de lo ente, del mundo helenístico-judaico, cuya estructura fundamental había sido establecida por Platón al principio de la metafísica occidental.
El ámbito para la esencia el acontecimiento del nihilismo es la propia metafísica, siempre que supongamos que bajo este nombre no entendemos una doctrina o incluso una disciplina especial de la filosofía, sino la estructura fundamental de lo ente en su totalidad, en la medida en que éste se encuentra dividido entre un mundo sensible y un mundo suprasensible y en que el primero está soportado y determinado por el segundo. La metafísica es el espacio histórico en el que se convierte en destino el hecho de que el mundo suprasensible, las ideas, Dios, la ley moral la autoridad de la razón, el progreso, la felicidad de la mayoría la cultura y la civilización, pierdan su fuerza constructiva y se anulen. Llamamos a esta caída esencial de lo suprasensible su descomposición. La falta de fe en el sentido de la caída del dogma cristiano, no es por lo tanto nunca la esencia y el fundamento del nihilismo, sino siempre una consecuencia del mismo; efectivamente, podría ocurrir que el propio cristianismo fuese una consecuencia y variante del nihilismo.
Partiendo de esta base podemos reconocer ya el último extravío al que nos vemos expuestos a la hora de captar o pretender combatir el nihilismo. Como no se entiende el nihilismo como un movimiento histórico que existe desde hace mucho tiempo y cuyo fundamento esencial reposa en la propia metafísica, se cae en la perniciosa tentación de considerar determinadas manifestaciones que ya son y sólo son consecuencias del nihilismo como si fueran éste mismo o en la de presentar las consecuencias y efectos como las causas del nihilismo. En la acomodación irreflexiva a este modo de representación se ha adquirido desde hace décadas la costumbre de presentar el dominio de la técnica o la rebelión de las masas como las causas de la situación histórica del siglo y de analizar la situación espiritual de la época desde este punto de vista. Pero cualquier análisis del hombre y de su posición dentro de lo ente, por aguda e inteligente que sea, sigue careciendo siempre de reflexión y lo único que provoca es la apariencia de una meditación, mientras se abstenga de pensar en el lugar donde reside la esencia del hombre y de experimentarlo en la verdad del ser.
Mientras sigamos confundiendo el nihilismo con lo que sólo son sus manifestaciones, la postura respecto al mismo será siempre superficial. Tampoco se irá más lejos por el hecho de armarse de un cierto apasionamiento en su rechazo basado en el descontento con la situación del mundo, en una desesperación no del todo confesada, en el desánimo moral o en la superioridad autosuficiente del creyente.
Frente a esto debemos comenzar por meditar. Por eso le preguntamos ahora al propio Nietzsche qué entiende por nihilismo y dejamos por ahora abierta la cuestión de si, con su comprensión, Nietzsche ya acierta y puede acertar con la esencia del nihilismo.
En una anotación del año 1887 Nietzsche plantea la pregunta (Voluntad de Poder, afor. 2): «¿Qué significa nihilismo?». Y contesta: «Que los valores supremos han perdido su valor».
Esta respuesta está subrayada y acompañada de la siguiente explicación: «Falta la meta, falta la respuesta al ‘porqué’».
De acuerdo con esta anotación, Nietzsche concibe el nihilismo como un proceso histórico. Interpreta tal suceso como la desvalorización de los valores hasta entonces supremos. Dios, el mundo suprasensible como mundo verdaderamente ente que todo lo determina, los ideales e ideas, las metas y principios que determinan y soportan todo lo ente y, sobre todo, la vida humana, todas estas cosas son las que se representan aquí como valores supremos. Según la opinión que todavía sigue siendo usual, por valores supremos se entiende lo verdadero, lo bueno y lo bello: lo verdadero, esto es, lo verdaderamente ente; lo bueno, esto es, lo que siempre importa en todas partes; lo bello, esto es, el orden y la unidad de lo ente en su totalidad. Pero los valores supremos ya se desvalorizan por el hecho de que va penetrando la idea de que el mundo ideal no puede llegar a realizarse nunca dentro del mundo real. El carácter vinculante de los valores supremos empieza a vacilar. Surge la pregunta: ¿para qué esos valores supremos si no son capaces de garantizar los caminos y medios para una realización efectiva de las metas planteadas en ellos?
Ahora bien, si quisiéramos entender al pie de la letra la definición de Nietzsche según la cual la esencia del nihilismo es la pérdida de valor de los valores supremos, obtendríamos una concepción de la esencia del nihilismo que entretanto se ha vuelto usual, en gran medida gracias al apoyo del propio título nihilismo y que supone que la desvalorización de los valores supremos significa, evidentemente, la decadencia. Lo que ocurre es que, para Nietzsche, el nihilismo no es en absoluto únicamente una manifestación de decadencia, sino que como proceso fundamental de la historia occidental es, al mismo tiempo y sobre todo, la legalidad de esta historia. Por eso, en sus consideraciones sobre el nihilismo, a Nietzsche no le interesa tanto describir históricamente la marcha del proceso de desvalorización de los valores supremos, para acabar midiendo la decadencia de Occidente, como pensar el nihilismo en tanto que «lógica interna» de la historia occidental.
Procediendo así, Nietzsche reconoce que a pesar de la desvalorización de los valores hasta ahora supremos para el mundo, dicho mundo sin embargo sigue ahí y que ese mundo en principio privado de valores tiende inevitablemente a una nueva instauración de valores. Después de la caída de los valores hasta ahora supremos, la nueva instauración de valores se transforma, en relación con los valores anteriores, en una «transvaloración de todos los valores». El no frente a los valores precedentes nace del sí a la nueva instauración de valores. Como en ese sí, según la opinión de Nietzsche, no se encierra ningún modo de mediación y ninguna adecuación respecto a los valores anteriores, el no incondicionado entra dentro de ese nuevo sí a la nueva instauración de valores. A fin de asegurar la incondicionalidad del nuevo sí frente a la recaída en los valores anteriores, esto es, a fin de fundamentar la nueva instauración de valores como movimiento de reacción, Nietzsche designa también a la nueva instauración de valores como nihilismo, concretamente como ese nihilismo por el que la desvalorización se consuma en una nueva instauración de valores, la única capaz de ser normativa. Nietzsche llama a esta fase normativa del nihilismo el nihilismo «consumado», esto es, clásico. Nietzsche entiende por nihilismo la desvalorización de los valores hasta ahora supremos. Pero al mismo tiempo afirma el nihilismo en el sentido de «transvaloración de todos los valores anteriores». Por eso, el nombre nihilismo conserva una polivalencia de significado y, desde un punto de vista extremo, es en todo caso ambiguo, desde el momento en que designa por un lado a la mera desvalorización de los valores hasta ahora supremos, pero al mismo tiempo se refiere al movimiento incondicionado de reacción contra la desvalorización. En este sentido es también ambiguo eso que Nietzsche presenta como forma previa del nihilismo: el pesimismo. Según Schopenhauer, el pesimismo es la creencia por la que en el peor de estos mundos la vida no merece la pena de ser vivida ni afirmada. Según esta doctrina, hay que negar la vida y esto quiere decir también lo ente como tal en su totalidad. Este pesimismo es, según Nietzsche, el «pesimismo de la debilidad». No ve en todas partes más que el lado oscuro, encuentra para todo un motivo de fracaso y pretende saber que todo acabará en el sentido de una catástrofe total. Por el contrario, el pesimismo de la fuerza, en cuanto fuerza, no se hace ilusiones, ve el peligro y no quiere velos ni disimulos. Se da cuenta de lo fatal que resulta una actitud de observación pasiva, de espera de que retorne lo anterior. Penetra analíticamente en las manifestaciones y exige la conciencia de las condiciones y fuerzas que, a pesar de todo, aseguran el dominio de la situación histórica.
Una meditación más esencial podría mostrar cómo en eso que Nietzsche llama «pesimismo de la fuerza» se consuma la rebelión del hombre moderno en el dominio incondicionado de la subjetividad dentro de la subjetidad de lo ente. Por medio del pesimismo, en su forma ambigua, los extremos se hacen a la luz. Los extremos obtienen, como tales, la supremacía. Así surge un estado en el que se agudizan las alternativas incondicionadas hasta moverse entre un o esto o lo otro. Se inicia un «estado intermedio» en el que se manifiesta, por un lado, que la realización efectiva de los valores hasta ahora supremos no se cumple. El mundo parece carente de valores. Por otro lado, en virtud de esta concienciación, la mirada escudriñadora se orienta hacia la fuente de la nueva instauración de valores, sin que el mundo recupere por eso su valor.
Sin embargo, a la vista de cómo se conmueven los valores anteriores, también se puede intentar otra cosa. Efectivamente, aunque Dios, en el sentido del dios cristiano, haya desaparecido del lugar que ocupaba en el mundo suprasensible, dicho lugar sigue existiendo aun cuando esté vacío. El ámbito ahora vacío de lo suprasensible y del mundo ideal puede mantenerse. Hasta se puede decir que el lugar vacío exige ser nuevamente ocupado y pide sustituir al dios desaparecido por otra cosa. Se erigen nuevos ideales. Eso ocurre, según la representación de Nietzsche (Voluntad de Poder, afor. 1.021 del año 1887), por medio de las doctrinas de la felicidad universal y el socialismo así como por medio de la música de Wagner, esto es, en todos los sitios en los que el «cristianismo dogmático no tiene más recursos». Así es como aparece el «nihilismo incompleto». A este respecto Nietzsche dice así (Voluntad de Poder, afor. 28 del año 1887): «El nihilismo incompleto, sus formas: vivimos en medio de ellas. Los intentos de escapar al nihilismo, sin necesidad de una transvaloración de los valores anteriores traen como consecuencia lo contrario y no hacen sino agudizar el problema».
Podemos resumir el pensamiento de Nietzsche sobre el nihilismo incompleto de manera más clara y precisa diciendo: es verdad que el nihilismo incompleto sustituye los valores anteriores por otros, pero sigue poniéndolos en el antiguo lugar, que se mantiene libre a modo de ámbito ideal para lo suprasensible. Ahora bien, el nihilismo completo debe eliminar hasta el lugar de los valores, lo suprasensible en cuanto ámbito, y por lo tanto poner los valores de otra manera, transvalorarlos.
De aquí se deduce que para el nihilismo completo, consumado y, por tanto, clásico, se precisa ciertamente de la «transvaloración de todos los valores anteriores», pero que la transvaloración no se limita a sustituir los viejos valores por otros nuevos. Esa transvaloración es una inversión de la manera y el modo de valorar. La instauración de valores necesita un nuevo principio, esto es, renovar aquello de donde parte y donde se mantiene. La instauración de valores precisa de otro ámbito. Ese principio ya no puede ser el mundo de lo suprasensible ahora sin vida Por eso el nihilismo que apunta a la inversión así entendida, buscará lo que tenga más vida. De este modo, el propio nihilismo se convierte en «ideal de la vida pletórica» (Voluntad de Poder, afor. 14 del año 1887). En este nuevo valor supremo se esconde otra consideración de la vida, esto es, de aquello en lo que reside la esencia determinante de todo lo vivo. Por eso queda por preguntar qué entiende Nietzsche por vida.
La indicación acerca de los diferentes grados y formas del nihilismo muestra que, según la interpretación de Nietzsche, el nihilismo es siempre una historia en la que se trata de los valores, la institución de valores, la desvalorización de valores, la inversión de valores, la nueva instauración de valores y, finalmente y sobre todo, de la disposición, con otra manera de valorar, del principio de toda instauración de valores. Las metas supremas, los fundamentos y principios de lo ente, los ideales y lo suprasensible, Dios y los dioses, todo esto es comprendido de antemano como valor. Por eso, sólo entenderemos suficientemente el concepto de Nietzsche de nihilismo si sabemos qué entiende Nietzsche por valor. Sólo entonces comprenderemos la frase «Dios ha muerto» tal como fue pensada. La clave para comprender la metafísica de Nietzsche es una explicación suficientemente clara de lo que piensa con la palabra valor.
En el siglo XIX se vuelve usual hablar de valores y pensar en valores. Pero sólo se hizo verdaderamente popular gracias a la difusión de las obras de Nietzsche. Se habla de valores vitales, de valores culturales, de valores eternos, del orden y rango de los valores, de los valores espirituales, que se cree encontrar, por ejemplo, en la Antigüedad. Gracias a una ocupación erudita con la filosofía y a la reforma del neokantismo se llega a la filosofía de los valores. Se construyen sistemas de valores y en ética se persiguen los estratos de valores. Hasta la teología cristiana determina a Dios, el summum ens qua summum bonum, como el valor supremo. Se considera a la ciencia como libre de valores y se arroja a las valoraciones del lado de las concepciones del mundo. El valor y todo lo que tiene que ver con el valor se convierte en un sustituto positivo de lo metafísico. La frecuencia con que se habla de valores está en paralelo con la indefinición del concepto. Dicha indefinición, a su vez, está en paralelo con la oscuridad del origen de la esencia del valor en el ser. Aun suponiendo que ese valor tan reclamado no sea nada, no por eso deja de verse obligado a tener su esencia en el ser.
¿Qué entiende Nietzsche por valor? ¿En qué se funda la esencia del valor? ¿Por qué la metafísica de Nietzsche es la metafísica de los valores?
En una anotación (1887/88) Nietzsche dice lo que entiende por valor (Voluntad de Poder, afor. 715): « El punto de vista del ‘valor’ es el punto de vista de las condiciones de conservación y aumento por lo que se refiere a formaciones complejas de duración relativa de la vida dentro del devenir».
La esencia del valor reside en ser punto de vista. Valor se refiere a aquello que la vista toma en consideración. Valor significa el punto de visión para un mirar que enfoca algo o, como decimos, que cuenta con algo y por eso tiene que contar con otra cosa. El valor está en relación interna con un tanto, con un quantum y con el número. Por eso, los valores (Voluntad de Poder, afor. 710 del año 1888) se ponen siempre en relación con una «escala de números medidas». Subsiste la cuestión de dónde se fundamenta a su vez la escala de aumento y disminución.
Gracias a la caracterización del valor como punto de vista aparece algo esencial para el concepto de valor de Nietzsche: en cuanto punto de vista, dicho concepto es planteado siempre por un mirar y para él. Este mirar es de tal naturaleza que ve en la medida en que ha visto; que a visto en la medida en que ha situado ante sí, ha representado a lo vislumbrado como tal y, de este modo o ha dispuesto. Es sólo por medio de este poner representador como el punto necesario para ese enfocar hacia algo y así guiar la órbita de visión de este ver, se convierte en punto de visión, es decir, en aquello que importa a la hora de ver y de todo hacer guiado por la vista. Por lo tanto, los valores no son ya de antemano algo en sí de tal modo que pudieran ser tomados ocasionalmente como puntos de vista.
El valor es valor en la medida en que vale. Vale, en la medida en que es dispuesto en calidad de aquello que importa. Así, es dispuesto por un enfocar y mirar hacia aquello con lo que hay que contar. El punto de visión, la perspectiva, el círculo de visión significan aquí vista y ver en un sentido determinado por los griegos, aunque teniendo en cuenta la transformación sufrida por la idea desde el significado de eädow al de perceptio. Ver es ese representar que, desde Leibniz, es entendido expresamente bajo el rasgo fundamental de la aspiración (appetitus). Todo ente es representador, en la medida en que al ser de lo ente le pertenece el nisus el impulso de aparecer en escena que ordena a algo que aparezca (manifestación) y de este modo determina su aparición. La esencia caracterizada como nisus de todo ente se entiende de esta manera y pone para sí misma un punto de vista que indica la perspectiva que hay que seguir. El punto de vista es el valor.
Según Nietzsche, con los valores en tanto que puntos de vista se establecen «las condiciones de conservación y aumento». La propia manera que tiene de escribir estas palabras en su lengua, sin la conjunción «y» entre conservación y aumento, que ha sido sustituida por un guión de unión *, le sirve a Nietzsche para hacer notar que los valores, en cuanto puntos de vista, son esencialmente, y por lo tanto siempre, condiciones de la conservación y el aumento. En donde se disponen valores hay que considerar siempre ambos tipos de condición, de tal modo que permanezcan unitariamente en mutua relación. ¿Por qué? Evidentemente solo porque lo ente mismo, en su aspiración y representación, es de tal modo en su esencia que necesita de ese doble punto de visión. ¿De qué son condiciones los valores como puntos de vista si tienen que condicionar al mismo tiempo la conservación y el aumento?
Conservación y aumento caracterizan los rasgos fundamentales de la vida, los cuales se pertenecen mutuamente dentro de sí. A la esencia de la vida le toca el querer crecer, el aumento. Toda conservación de vida se encuentra al servicio del aumento de vida. Toda vida que se limita únicamente a la mera conservación es ya una decadencia. Por ejemplo, para un ser vivo asegurarse el espacio vital nunca es una meta, sino sólo un medio para el aumento de vida. Viceversa, una vida aumentada acrecienta la necesidad anterior de ampliar el espacio. Pero no es posible ningún aumento si no existe ya y se conserva un estado asegurado y sólo de ese modo capaz de aumento. Lo vivo es por tanto una «formación compleja de vida» constituida por la unión de ambos rasgos fundamentales, el aumento y la conservación. Los valores, en su calidad de puntos de vista, guían la visión hacia «la contemplación de las formaciones complejas». La visión es, en cada caso, visión de una mirada vital que domina sobre todo ser vivo. Desde el momento en que dispone los puntos de visión para los seres vivos, la vida se muestra en su esencia como instauradora de valores (vid. Voluntad de Poder, afor. 556 del año 1885/86).
Las «formaciones complejas de vida» dependen de las condiciones de una conservación y una permanencia tal que lo permanente sólo permanece a fin de volverse no permanente en el aumento. La duración de esta formación compleja de la vida reposa en la relación alternante de conservación y aumento. Por eso, es sólo relativa. Sigue siendo una «duración relativa» de lo vivo, esto es, de la vida.
Según las palabras de Nietzsche, el valor es «punto de vista de las condiciones de conservación y aumento por lo que se refiere a formaciones complejas de duración relativa de la vida dentro del devenir». La palabra devenir, sola y sin determinar, no significa ni aquí, ni en general en el lenguaje de los conceptos de la metafísica de Nietzsche, algún modo de fluir de todas las cosas, el mero cambio de los estados, ni tan siquiera alguna evolución o desarrollo indeterminado. «Devenir» significa el tránsito de una cosa a otra, ese movimiento y movilidad que Leibniz llama en su Monadología (parágrafo 11) changements naturels y que domina a través del ens qua ens, esto es, del ens percipiens et appetens. Nietzsche piensa ese dominio en tanto que rasgo fundamental de todo lo efectivamente real, es decir, en un sentido amplio, de lo ente. Eso que determina de este modo a lo ente en su essentia lo concibe como «voluntad de poder».
Si Nietzsche cierra su caracterización de la esencia del valor con la palabra devenir hay que concluir que esa palabra final nos señala el ámbito fundamental al que únicamente y en general pertenecen los valores y la instauración de valores. «El devenir» es, para Nietzsche, « la voluntad de poder». La «voluntad de poder» es por tanto el rasgo fundamental de la «vida», palabra que Nietzsche también usa a menudo en un sentido amplio que la pone al mismo nivel que el «devenir» dentro de la metafísica (vid. Hegel). Voluntad de poder, devenir, vida y ser en su sentido más amplio significan en lenguaje de Nietzsche lo mismo (Voluntad de Poder, afor. 582 del año 1885/86 y afor. 689 del año 1888). Dentro del devenir, la vida, esto es, lo vivo, se configura en centros respectivos de la voluntad de poder. Estos centros son en consecuencia formaciones de poder. Es en cuanto tales como Nietzsche entiende el arte, el Estado, la religión, la ciencia la sociedad. Por eso puede decir (Voluntad de Poder, afor. 715) lo siguiente: «‘Valor' es esencialmente el punto de vista para la consolidación o la debilitación de estos centros de dominio» (concretamente en lo tocante a su carácter de dominio).
En la medida en que, en la demarcación de la esencia del valor que hemos presentado, Nietzsche concibe a ésta como condición con carácter de punto de vista para el aumento y la conservación de la vida, pero entiende que la vida se fundamenta en el devenir como voluntad de poder, dicha voluntad de poder se desvela como aquello que establece esos puntos de vista. La voluntad de poder es la que estima según valores a partir de su «principio interno» (Leibniz), en tanto que nisus en el esse del ens. La voluntad de poder es el fundamento para la necesidad de instauración de valores y el origen de la posibilidad de una valoración. Por eso dice Nietzsche (Voluntad de Poder, afor. 14 del año 1887: «Los valores y su transformación se encuentran en relación con el aumento de poder del que plantea los valores.»
Aquí se hace evidente que los valores son las condiciones de la voluntad de poder puestas por ella misma. Sólo allí, en donde la voluntad de poder hace su aparición como rasgo fundamental de todo lo efectivamente real, esto es, allí en donde se torna verdadera y, por consiguiente, es concebida como la realidad efectiva de todo lo efectivamente real, se muestra de dónde surgen los valores y por medio de qué es soportada y guiada toda valoración. Ahora se reconoce el principio de la instauración de valores. La instauración de valores es a partir de ahora realizable «principalmente», esto es, a partir del ser en tanto que fundamento de lo ente.
Por eso, la voluntad de poder es al mismo tiempo, en tanto que ese principio reconocido y por consiguiente querido, el principio de una nueva instauración de valores. Es nueva, porque se consuma por primera vez conscientemente a partir del saber de su principio. Es nueva, porque se asegura ella misma de su principio y mantiene fijamente esa seguridad a modo de un valor planteado a partir de dicho principio. Pero la voluntad de poder es, en cuanto principio de la nueva instauración de valores y en relación con los valores anteriores, el principio de la transvaloración de todos los valores anteriores. Como, sin embargo, los valores hasta ahora supremos dominaban sobre lo sensible desde las alturas de lo suprasensible y dado que la estructura de este dominio es la metafísica, tenemos que con la instauración del nuevo principio de transvaloración de todos los valores se consuma la inversión de toda metafísica. Nietzsche considera esta inversión como una superación de la metafísica. Pero, cegándose a sí misma, toda inversión de este tipo sigue estando siempre implicada en lo mismo, que se ha vuelto irreconocible.
Ahora bien, en la medida en que Nietzsche concibe el nihilismo como la legalidad en la historia de la desvalorización de los valores hasta ahora supremos, pero concibe la desvalorización en el sentido de una transvaloración de todos los valores, según su interpretación, el nihilismo reside en el dominio y el desmoronamiento de los valores y, por lo tanto, en la posibilidad de una instauración de valores en general. Esta misma se fundamenta en la voluntad de poder. Por eso es por lo que la frase de Nietzsche «Dios ha muerto» y su concepto del nihilismo sólo se pueden pensar suficientemente a partir de la esencia de la voluntad de poder. Por eso, cuando explicamos qué piensa Nietzsche con la fórmula «voluntad de poder», que él mismo acuñó, damos el último paso en dirección al esclarecimiento de la consabida frase.