quarta-feira, 15 de julho de 2009

Ulysses Bittencourt (1916-1993)

































MEMORIAL (II)

por Ulysses Bittencourt


Já dizia Campbell que "viver nos corações que deixamos atrás de nós é não morrer". Reviveremos sempre as figuras amáveis da nossa cidade, como nos "Velhos tempos" do André Jobim e à maneira tão delicada do Belmiro Vianez, em antiga página domingueira de "A Crítica", chorando e relembrando os mortos queridos. Hoje, duas figuras marcantes.

Antônio Magvinier de Castro, nascido no Ceará, em 1895, mas que se fez amazonense dos melhores.

Na década de 1930 ainda existia em Manaus uma numerosa plêiade de pessoas cultas que haviam residido e estudado na Europa, e era com certo orgulho, com admiração e respeito, que os vindos à luz depois da Primeira Guerra Mundial, já em plena crise econômica, a elas se referiam. Daquele grupo vem à lembrança, ao acaso, os nomes do Mello Rezende (saúdo-te, Paulo!), de Nilo Rubim, de Bernardo Ramos e sua família, Ramalho Júnior e suas filhas Magnólia e Miosótis (todo o nosso bem-querer! sendo Miosótis a nossa cicerone em Paris), Deodoro de Alcântara Freire, Geraldo Bastos, Carlos Mesquita, Alyrio Ramos, Oswaldo Mendonça, o poeta Raymundo Monteiro, gente que fez cursos na França, na Bélgica, na Inglaterra, na Espanha...

No registro da memória daquele tempo e daqueles hábitos privilegiados, é de de justiça incluir os Magvinier de Castro, provindos genealogicamente do ramo dos Mavignier que se estabeleceram em Pernambuco, originários da Bretanha, onde, na condição política de "chouans", haviam lutado pelo restabelecimento da velha monarquia francesa dos Luíses, contra o que consideravam conspurcação do trono real por Bonaparte. Seu bisavô francês Alexandre casou-se já no Brasil, e teve dez filhos pernambucanos, dos quais seis homens, mais tarde espalhados por várias outras Províncias.

Magvinier de Castro foi levado a Paris por uma tia e ali estudou humanidades e bacharelou-se, tendo concluído o ginasial no Lycée Louis-le-Grand, o mais antigo da França. Durante treze anos de permanência, percorreu toda a Europa, observando e absorvendo o máximo, com seu espírito curioso e ágil.

Regressando ao Amazonas em 1917, emprestou o brilho de suas boas luzes a vários cargos públicos, tendo sido sucessivamente Promotor de Justiça em Tefé, Eirunepé e Manacapuru, Diretor da Secretaria da Câmara Municipal e Prefeito de Moura. Mais adiante, alcançou por concurso uma cátedra na Escola de Comércio Solon de Lucena, na qual veio a aposentar-se. Jornalista fecundo, exerceu as funções de Redator-Secretário do "Jornal do Comércio" e foi membro destacado da Academia Amazonense de Letras e do IGHA.

De sua vivência pelo interior do Estado, escreveu, sobre nossa hinterlândia os admiráveis capítulos que compõem "Amazônia Panteísta", obra considerada clássica (e que trouxe ilustrações de Moacyr Andrade). Em 1948 escreveu "Síntese Histórica e Sentimental da Evolução de Manaus", ilustrada por seu filho, o saudoso pintor e poeta Afrânio de Araújo de Castro e contendo, além da capa desenhada por Branco Silva, o prefácio que constituiu o último trabalho da lavra do grande Adriano Jorge.

Mavignier de Castro veio a falecer em 1970, tendo deixado em sua obra uma inolvidável contribuição ao Amazonas, a terra adotiva que ele tanto soube compreender e amar e da qual, com sensibilidade, se tornou um intérprete dos mais inspirados.

Adriano Queiroz - Mestre Adriano Queiroz (como veio a ser chamado) foi um daqueles companheiros de juventude dos quais nunca nos esquecemos, pelo seu jeito bom e amigo e, depois, por sua trajetória existencial plenamente realizada, com tanto brilho.

De origem modesta, Adriano nasceu no Careiro, a 1º de março de 1913 e ainda criança foi confiado a uma lavadeira, senhora humilde mas que, com amor e denodo, soube encaminhá-lo sempre bem, nos estudos, no trabalho, na Vida afora.

Inicialmente cursou o colégio do Prof. Vicente Blanco e, após terminar o Ginásio em 1932, estudou Direito em nossa Faculdade, da qual, pela sua força de vontade e competência, se tornou Professor de Direito Civil, cátedra que veio depois a conquistar em concurso.

Adriano era de compleição atlética e no Ginásio foi respeitado como boxeador sempre disposto a uma luta, e, também, como atirador. Sua capacidade de perseverança era assombrosa. Conta-se que, reprovado certa vez em Matemática, estudou com tal afinco que, além de tirar nota máxima, ainda se tornou professor da matéria. Consta que, pondo em prática excepcional memória, sabia de cor todo o Código Civil Brasileiro. Numa entrevista que concedeu a Fernando Collyer, em 1968, afirmava: "Direito não é só o que se encontra codificado, ele também está fora da lei e dos códigos. E se o Direito Positivo não se transformar diante dos fatos da vida social, ficará em conflito com a justiça".

Pelo exemplo do esforço que sempre desenvolveu, pelo sentido ascencional de sua vida, pela maneira como captou e transmitiu o Direito em sua expressão mais elevada, Adriano Queiroz, por um limpo trabalho de conquista, faz jus a integrar a galeria daqueles que, vivos em nossa memória e em nossa saudade, "por obras valerosas, se vão da lei da Morte libertando"!



(PATIGUÁ [coletânia póstuma de crônicas e artigos jornalísticos, Rio de Janeiro, Copy & Arte, 1993], pp. 49 a 51, texto publicado originalmente em A CRÍTICA de 1.12.1983)











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“A partida do velho amigo”

(7 de março de 1985)

por Ulysses Bittencourt (1916-1993)

Na intimidade quieta da mata, causa susto e tristeza ver de repente o raio abater árvore secular. A mesma sensação acometeu-me ante o desaparecimento, dia 26 de fevereiro, do sábio Nunes Pereira. Por sua morte a floresta amazônica ficou sem um dos seus mais altos e valiosos exemplares, um exemplar insubstituível. A metáfora pode ser antiga, mas é exata para expressar o doloroso fato.

Nascido no Maranhão, cedo ele viajou para o Amazonas e ao nosso Estado passou a dedicar quase todo o resto de sua produtiva e longa vida de intelectual, antropólogo, etnólogo e biólogo, partindo da Veterinária. Com seu jeitão boêmio, bom bebedor que foi até findar-se aos 92 anos, Manoel Nunes Pereira, na realidade, era um estudioso metódico, um pesquisador obstinado e pertinaz. Tendo abandonado o curso de Direito, a partir daí tornou-se autodidata. Além do português, do tupi-guarani, nheengatu, dominava o inglês, o francês, o alemão e o italiano. Mantinha intercâmbio verbal ou por correspondência com os mais importantes nomes da cultura brasileira e estrangeira. Foi a síntese perfeita do homem brasileiro: branco, preto e índio. Ele mesmo dizia ter “os cabelos do português, as feições do índio e o tom de pele mulato herdado de minha mãe”. Daí ser recebido em todos os ambientes com alegria. Para exemplificar: esteve em várias tribos afastadas da “sifilização” (como ele chamava), sendo logo acolhido como sábio pajé e chamado pelos naturais de “saracura branca”. Conviveu por longos períodos com os silvícolas, alimentando-se e procedendo como um deles, o que lhe valeu um enorme repertório engraçadíssimo de episódios e de anotações de raro valor científico, aproveitadas em seus trabalhos. De vez em quando, Nunes Pereira era tema de extensas reportagens em jornais, revistas e entrevistas na televisão. Guardo três dessas reportagens de O Globo, uma de 1974 e duas outras de 1975 e 1977. Em artigo do Jornal do Brasil, disse dele Carlos Drummond de Andrade: ”Homem de ciência agudamente provido de sensibilidade e visão humanística, eis o que é o caboclo maranhense Nunes Pereira. Daí seu livro soar um som claro, alegre, sadio, jamais instalando tédio pela informação indigesta”. Membro fundador da Academia Amazonense de Letras, Nunes pertencia ainda a inúmeras outras instituições culturais e científicas. Todo esse prestígio, porém, não o afetava. Residindo em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, por muitos anos, fazia suas viagens com módicas ajudas-de-custo pelo Ministério da Agricultura – do qual foi funcionário, recebendo daí sua modesta aposentadoria – ou comissionado pelo Governo do Amazonas, pouco mais auferindo com a venda de seus livros.

Um sábio que era, morreu pobre, despojado e simples como sempre viveu, respeitado pela grandeza de sua obra e pelas cintilações de sua presença em qualquer meio. Honrou-me frequentando minha casa, como frequentou a casa de meu avô [1], a de meu pai [2], a de meus irmãos, depois também a de meu filho Flávio, com cujo filho Eduardo brincou várias vezes, somando assim uma amizade que se estendeu ao longo do tempo por cinco gerações [3].

Artigo publicado na coletânea póstuma “Patiguá”, Rio de Janeiro: Copy & Arte, 1993, pp. 114–115; apresentação de Mário Ypiranga Monteiro; desenho reproduzido na capa: Appe (Amilde Pedrosa)".


Notas:

"[1] Antônio Bittencourt, ex-governador do Amazonas, autor de Memória do Município de Parintins, 2ª ed. (Manaus: Governo do Estado do Amazonas, 2001 [1924]);

[2] Agnello Bittencourt, geógrafo, ex-prefeito de Manaus, foi um dos fundadores, em 1917, do IGHA – Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, autor de Corographia do Estado do Amazonas, 2ª ed. Manaus: ACA (Associação Comercial do Amazonas - Fundo Editorial, 1985 [1925]);

[3] “Por instância do acadêmico Bernardo Cabral, proferi a oração de adeus em nome da Academia Amazonense de Letras e do Governo do Estado do Amazonas, depositando simbolicamente no túmulo de Nunes Pereira uma coroa de louros e um ramo de acácia [planta símbolo da Maçonaria], tão sua conhecida" (nota acrescentada por U.B. para a coletânea Patiguá; artigo publicado originalmente em A Crítica, de Manaus, em 7 de março de 1985)".




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MEMORIAL



Pelo realce de suas inteligências, seus trabalhos e suas personalidades, três nomes serão aqui lembrados, porque se destacaram na admiração geral à época em que viveram. Três pessoas nascidas no Ceará e vindas muito jovens para Manaus.





Hemetério Cabrinha



Chamava-se, na realidade, Hemetério José do Santos, havendo incorporado ao nome o apelido Cabrinha. Espírito de luz, nasceu em Fortaleza, a 3 de março de 1892, tendo desencarnado a 12 de fevereiro de 1959. Veio em 1918 para Manaus, onde cumpriu a sua missão por mais de quatro décadas. Foi operário, na qualidade de marceneiro e, sem freqüentar escolas, acabou transformando-se num intelectual respeitado, num vibrante orador, livros publicados, tudo pela pura força espiritual e capacidade de trabalho. Poeta espontâneo, deixou os seguintes livros: Frontões, Satã, Caim, Meu Sertão, o drama em três atos Regeneração e o mais conhecido, Vereda Iluminada; colaborou em diversas revistas e trabalhos inéditos.



Quando Vargas veio a Manaus em 1940, Hemetério saudou-o com arrebatador improviso em praça pública, o que muito impressionou o então Presidente, acostumado a ouvir grandes tribunos, e este, ao retornar ao Catete, nomeou-o para alto cargo no Ministério do Trabalho, por considerá-lo líder nato do operariado amazonense.



Espiritualista praticante, Hemetério Cabrinha atingiu um vigoroso grau de desenvolvimento espiritual, sempre exercido exclusivamente na direção do bem, no sentido de dar conforto aos angustiados e sofredores. Pela última vez vi-o discursar em março de 1958, numa homenagem, em festa magna, que o Centro de Irradiação Mental do Tattwa Nirvana prestava ao Irmão Agnello Bittencourt.



O carpinteiro era, pela palavra e pelo verso, o Mestre, que dizia, em sua autêntica profissão-de-fé: “A esmola que se dá, sem humilhar quem pede, / É a graça maior que o Grande Deus concede / A quem dores transforma em pétalas de rosas”.



Hildebrando Marinho



Há de perdurar, na saudade e na recordação de todos que o conheceram, o vulto admirável desse homem nascido na cidade cearense de Itapioca, a 23 de abril de 1886 e falecido em 25 de janeiro de 1977, na Manaus de sua predileção, à qual chegou com menos de vinte anos de idade; e onde se fixou, com tenacidade e amor, aqui tendo-se casado com a professora Leonilla Guimarães de Souza, de tradicional família. Foi uma união sólida, bonita e duradoura. Hildebrando, como o seu irmão Coronel Licurgo (hoje igualmente desaparecido), possuía um caráter inamolgável e um dinamismo inconteste. Sempre morou à Rua Dr. Moreira. Serviu desde muito jovem à Manáos Harbour, Limited, galgando ali todos os postos, inclusive por bastante tempo o de Gerente-Chefe, no qual continuou, mesmo depois que a empresa foi adquirida pelo Governo brasileiro. Foram mais de cinqüenta anos de dedicação ao trabalho, respeitado e elogiado pelos ingleses e por toda a população de nossa Capital, tendo recebido justas homenagens de reconhecimento ao mérito, quando deixou o serviço ativo, em virtude da idade provecta. Alto, ereto e elegante, manteve o mesmo porte até o fim. Ao completar seu nonagésimo aniversário, em 1976, os numerosos amigos encheram sua residência, numa demonstração de carinhoso apreço. Com sua inteligência vivaz e sua personalidade forte, Hildebrando Marinho acompanhou com um interesse realmente didático as transformações políticas e sociais de Manaus, e sua conversação eram verdadeiras aulas de história, pelas informações precisas e profundas que continham. Ele foi um amigo querido e uma pessoa progressista e de ação, e mesmo aposentado continuou repartindo sua intensa atividade entre o sítio “Santa Rita” e a fazenda de criação de gado, no Careiro.



Deixou uma prole grande e ilustre, que também muito vem honrando Amazonas.




Maria Luíza de Sabóia - Foi uma das mulheres mais cultas do seu tempo. Nasceu a 29 de dezembro de 1890 e faleceu em Manaus a 24 de abril de 1970, filha do professor e doutor Gilberto Ribeiro de Sabóia e de dona Josefa Augusta de Sabóia. O casal, com seus seis fihos, se transferira do Ceará para o nosso Estado no ano de 1900, indo morar à Rua Comendador Alexandre Amorim, quando maria Luíza tinha dez anos de idade. E na mesma casa viveu ela durante setenta anos, até morrer.

Solteira, dedicou meio século de sua profícua existência ao magistério amazonense, quer como professora do Grupo Escolar "Cônego Azevedo", quer lecionando a língua francesa no "Colégio Brasileiro" e no Ginásio Amazonense, além de continuar fazendo-o particularmente até seus últimos dias.

De pele muito clara e rosada, em suas feições regulares ela era uma pessoa extremamente comunicativa, cheia de entusiasmo e bom humor. Foi mestra notável, realçando sua personalidade pela sólida formação moral e religiosa que possuía. Apaixonada pelo idioma francês, em que muito gostava de conversar, fazendo-o com a maior fluência e desembaraço, conhecia profundamente a literatura da França, tendo prazer na citação dos clássicos.

Maria Luíza fio a primeira mulher a cursar a nossa Faculdade de Direito, tendo-se bacharelado em 1917 e passado a pertencer ao quadro da Ordem dos Advogados do Brasil.

Muitas gerações devem a ela não apenas conhecimento de Francês, mas toda uma farta ilustração humanística.

Lembrados, não estão mortos os Amigos que se foram de nosso convívio material".


[PUBLICADO EM A Crítica (Manaus, 4 de novembro de 1983),

republicado na coletânea póstuma Patiguá (Rio de Janeiro: Copy & Arte, 1993), pp. 46-48.]



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O entrudo e seu tempo
                  Ulysses Bittencourt [http://pt.wikipedia.org/wiki/Ulysses_Bittencourt]

Quando hoje nos preocupamos, cheios de justas razões, com a escalada ascendente de violência que nos cerca e envolve, seja na distância do plano internacional, seja na proximidade da calçada pela qual transitamos [O CASAL DE AMAZONENSES ULYSSES E FERNANDA BITTENCOURT MORAVA NA RUA BARATA RIBEIRO, EM COPACABANA, RIO, NA ALTURA DO POSTO 5], será oportuno lembrarmos, para melhor avaliação do assunto, que, pelo menos em termos de carnaval, a coisa já foi outrora bem pior que atualmente, nos grossos tempos do entrudo.
No Brasil, a prática do entrudo veio da era colonial e estendeu-se até o final do século passado [DO SÉCULO XIX].
Cândido de Figueiredo, no seu dicionário, dá o vocábulo como sinônimo simples de carnaval, com origem na palavra latina "introitus", que o notável Santos Saraiva traduz como "ação de entrar; entrada". Já o Aurélio explica melhor o nome ao defini-lo brasileiramente, como folguedo carnavalesco antigo que consistia em lançar uns nos outros água, farinha, tinta, etc.
Em mais de um dos seus artigos, Genesino Braga evocou velhos carnavais amazonenses. E Agnello Bittencourt, no seu livro "Fundação de Manaus - Pródromos e Sequências", descrevendo a cidade que ele viu ir se transformando pelas grandes reformas de Eduardo Ribeiro, registra, descrevendo a cidade no ocaso do século XIX, que "o carnaval era um pouco rude, e o 'entrudo' invadia e sujava as residências, mas sem quaisquer ofensas".
Não havia, de início, músicas especialmente feitas para os festejos carnavalescos. Nos salões, o divertimento transcorria ao compasso dos mais ligeiros ritmos, das mais animadas polcas, mazurcas, valsas e quadrilhas já conhecidas. E nas ruas, antes do uso comprotado e romântico do corso em carruagens e, depois, em automóveis, dos desfiles de carros alegóricos, dos ranchos, havia foliões isolados, quase sempre mascarados e com disfarces e alguns bandos - como agora os remanescentes "blocos de sujos" e "clóvis", corruptela de "clowns" - divertindo-se em tocar o "Zé Pereira", quando havia instrumentos para isso ou apenas em fazer barulho com latas, tambores, apitos e bexigas de boi cheias de ar e amarradas na extremidade de uma vara. Havia os chamados "assustados", que consistiam em ir à casa de um conhecido e transformá-la em festa improvisada.
A turma do entrudo estava sempre munida dos chamados "limões" que eram pequenas cabaças feitas de cera contendo presumivelmente água perfumada. Mas nem sempre era esse seu conteúdo. Havia com talco, tinta, carvão em pó e, às vezes, até coisas piores... De preparo artesanal, tais cabacinhas possuíam consistências variadas e eram destinadas a arremesso para espocarem de encontro ao alvo; certas vezes pareciam pedradas. depois do forte impacto, o conteúdo, cheiroso ou não.
Os alvos do entrudo tanto podiam ser transeuntes que se afoitassem a ir às ruas, quanto residências de conhecidos. Geralemnte eram necessários dias para se limparem as casas, até com caiação, depois da brincadeira. E o jeito era aguentar, ter ou fingir bom humor, porém jamais reagir. Nada de tiros, facadas ou brigas por causa do entrudo, que isso era profundamente antiesportivo. Afinal, ele consubstanciava toda uma concepção de vida, mais simples, menos neurotizada e, sobretudo, até mais humana, hoje difícil até de compreender, de captá-la em toda sua extensão e em toda a sua força.
(Extraído de Raiz [coletânea de crônicas publicadas no jornal A Crítica, de Manaus, nos anos 1980], de Ulysses Bittencourt, que foi membro do IGHA e da AAL.)  p. 39;



"ESTÓRIA DE TESOURO
                              Ulysses Bittencourt

Na crônica das riquezas produzidas e acumuladas pelo homem, houve sempre certa parcela de entesouramento privado, com dinheiro e bens escondidos (principalmente antes do Imposto de Renda...) e isso, através dos tempos, gerou a possibilidade de descobertas e muitas lendas daí decorrentes.
O Amazonas não poderia fugir à regra. Quando, por exemplo, deu-se a morte misteriosa de Eduardo Ribeiro, não foram poucos os boatos circulantes, na época, sobre a existência de valiosas joias conservadas por ele, e que teriam desaparecido, até como provável motivo do "suicídio" inconvincentemente apresentado ao público. Este é um caso que permanece no rol dos fatos sem qualquer confirmação, das simples lendas.
Outro, de maior possibilidade e mais complexo, envolve uma certa quantidade de ouro e joias que teriam pertencido ao governador Fileto Pires Ferreira. As circunstâncias que o cercam são estranhas e, no mínimo, fora do comum.
Fileto foi Oficial do Exército, integrando o grupo jovem que cercava e apoiava Benjamin Constant. Assistiu à Proclamação da República, tornou-se adepto de Floriano Peixoto e, por determinação deste, voltou ao Amazonas - onde já servira antes - tendo ingressado na política. Foi Secretário do Estado de Eduardo Ribeiro, depois elegeu-se e reelegeu-se Deputado Federal. Em 1895, mesmo sem maioria no Partido Democrata nem no Congresso Estadual, foi escolhido, por decisão do "Pensador" [GOVERNADOR EDUARDO RIBEIRO] para seu substituto, através de uma fraude histórica. Organizou-se a farsa de uma votação espúria às dez horas da manhã, quando o horário regimental começava os trabalhos do Legislativo duas horas depois, fazendo-se disparar antecipadamente um rojão que, desde muitos anos, informava à população de Manaus a passagem do meio-dia. Daí o apelido famoso de "Congresso Foguetão".
Em 1896, o Capitão Fileto Pires Ferreira vence nas urnas e é reconhecido e empossado como governador, de conformidade com o plano e desejo de Eduardo Ribeiro.
Operoso e contando com os recursos surpreendentes advindos do preço da borracha, ele foi um administrador de invejável brilho, tendo inaugurado o Teatro Amazonas. Em 1898, achando-se doente e considerando calma a situação política do Estado, deixa o cargo provisoriamente nas mãos do Vice-Governador Ramalho Júnior - como já fizera duas vezes anteriores - e viaja para a Europa (Tive o privilégio de manusear os originais dos dois pedidos anteriores de licença, pertencentes ao arquivo da professora e querida amiga Magnólia Malcher Ramalho Nery).
Na ausência de Fileto, arma-se nova farsa, desta vez contra ele e pelos mesmos "amigos" que o elegeram. Consuma-se a renúncia que disse não chegara a formular e impede-se sua volta a Manaus, cidade a que nunca mais pôde retornar, até sua morte, ocorrida em 1917.
Fileto mandara construir um dos mais belos prédios residenciais de Manaus, que se erguia em terreno alto, na Avenida Sete de Setembro, hoje reduzida aos alicerces. Anos depois a casa senhorial é adquirida por um conhecido empresário amazonense e ali fatos inusitados começam a acontecer, conforme reportagem estampada em jornal. Alguém sonhara com um aposento secreto, o qual veio, na verdade, a ser descoberto sob a cozinha. Era um quarto de chão batido, desprovido de móveis e que voltou a ser fechado por falta de serventia. Simultaneamente, um vigia da casa, cearense muito humilde e de família numerosa, passou a sonhar com um homem vestido de preto. Tendo visto um retrato de Fileto e, sem sequer saber tratar-se do antigo dono do imóvel, afirmou ser aquele o vulto que havia visto em sonho, pedindo-lhe alguma coisa. Apavorado, pediu substituto. Enquanto o proprietário da casa procurava novo empregado, eis que certo dia o cearense viaja de avião com toda a sua numerosa prole, indo para a terra natal. Todos ao saberem do fato atribuíram-no ao encontro e retirada de alguma coisa de valor. Nada mais se soube a respeito, mas a lenda ficou, com a ideia de que o tesouro de Fileto foi descoberto e aproveitado."

(RAIZ [coletânea de crônicas de Ulysses Bittencourt publicadas na primeira metade dos anos 1980, no jornal A Crítica, de Manaus], Rio de Janeiro: Copy & Arte, 1985, pp. 23 - 24)